Edição N. 02 - 25/07/2021
Orquestra

Realização FORA DE SÉRIE percursos culturais.

Textos: Antônio Carlos Queiroz, Camilla Osório de Castro, Manuela Marques, Miguel Boaventura, Sarah Coelho, Tuty Osório, Ana Karla Dubiela.

Fotografia: Celso Oliveira, Camilla Osório de Castro, Manuela Marques.

Projeto Gráfico e Diagramação: Manuela Marques com consultoria de Fernando Brito.

Ilustrações e Quadrinhos: Manuela Marques, Mário Sanders.

Revisão: Camilla Osório de Castro.

Mídias sociais: Beatriz Lustosa.

 

ALVORADA

De volta com os temperos e as gingas pra leitura de domingo à noite. Sempre com a inspiração nos tradicionais jornais impressos do início do século XX, lançamos um desafio. Compartilhe com a gente uma história tendo o Velho Jornal como protagonista. Nós já colecionamos algumas e vamos contá-las aqui, nas próximas semanas.
A ludicidade das curiosidades, a emoção das fábulas, a beleza das poesias, enfim a aventura da leitura. Demos uma aprimorada no Projeto Gráfico para facilitar nas telinhas. E estamos na dedicação máxima para levar pra vocês um abraço de letras no finalzinho das tardes de domingo.

Vamos!

– Tuty Osório

Reportagem Ensaio

COMO PROUST PODE MUDAR SUA VIDA

Por Miguel Boaventura

À moda Machado de Assis, comento com o caro leitor e com a cara leitora o quanto a leitura nos é agradável e redentora de angústias e tédios. Para nós que a amamos e já constatamos que não podemos viver sem ela, essa questão é uma obviedade sem precisão de digressões ou de provas. É assim, indubitavelmente, e pronto. Não há vida, para nós, sem livros, sem histórias, sem as mágicas letras em evoluções de sentidos e segredos.

Não vêm ao caso, aqui, estatísticas de vendas de livros, no Brasil e além, para comprovar o quanto a leitura ocupa espaço na vida de gente. Nunca essa expressão de importância será quantitativa. A morte do livro foi anunciada com a chegada do rádio, do cinema, da TV, da internet. E todos esses discípulos, na verdade, só o fortaleceram e a seu conceito fundador. Dentro de um livro há histórias. Explícitas, cifradas, vulgares, sofisticadas, formais, livres, morais, perversas. E toda a comunicação depois do livro, é uma narração em variados formatos.

Pelo referencial da tecnologia, não houve revolução mais ousada. Portabilidade, durabilidade, anatomia, velocidade. Nenhum chip, laser, sistema operacional, apple whatch se afirmou mais vanguarda.

Com os leitores digitais foi ele, o livro, que dominou o suporte e não o contrário.

Kindle, Kobo, Tablets variados, são moldados para se aproximar ao máximo desse objeto mais que milenar. Virar páginas, presença de grafismos, a luz sobre a tela que imita a página, sem nunca ter conseguido propor nada em substituição.

E sim, o livro, os autores, a literatura, podem mudar a sua vida. Podem te dar um par de asas para voar, viajar, sair do canto sem bagagem nem bilhete. Terá sido,

sem sobra de dúvida e eficácia comprovada uma das maiores defesas contra o pânico na Pandemia da Covid 19. E afinal, como Proust, e todos os outros autores e autoras podem mudar a sua vida? Abrace-se com eles à noite, de manhã, de tarde. Na cidade, no campo, na praia. Entregue-se, leia, leia, leia e deixe-se levar por esses ninhos, universos, céus, chamas e oceanos.

Vista por Celso Oliveira

TRILHAS

Em Busca do Tempo Perdido, por Marcel Proust, tradução de Rosa Freire e Mário Sérgio Conti, última edição Brasileira, Companhia das Letras, 2021.

Em Busca do Tempo Perdido, por Marcel Proust, editoras diversas, disponível na Amazon Livros.

Marcel Proust (uma biografia), por George D. Painter. Editora Guanabara, 1993.

Como Proust pode mudar sua vida, por Alan de Botton, Rocco, 1999.

Poesia

Freiriana

Por Antônio Carlos Queiroz

Palavrão né

necessariamente Palavração:

a via pro

inédito viável

Mas quanta satisfação

poder xingar – eu com você –

(em quimbundo ou não) poder – você comigo – dar nomes aos bois e às cadelas

do fascismo acesas

no cio sempre

em nome da regressão

Efe-é-fe-la-da-pu-tas: balbucio

soletro

silabo – silabamos

sabendo que a gente pode ser

muito além

do que já foi Voltaremos a cantar e dançar!

Nossa riqueza é feita

com rimas pobres

do verbo esperançar

ACQ 12/07/2021

Crônicas - NA BOCA DA NOITE

O RIACHO QUE VIROU MAR

Por Ana Karla Dubiela

Ilustração: Manuela Marques

Havia um riacho, o riacho Amarelo, onde a criançada bem miúda se acostumou a pescar de anzol, nos tempos de cheia, ou de peneira, quando a chuva fugia. Entre passarinhos e bichos de todos os tipos, aqueles meninos cresceram entre as aulas caseiras, aprendendo a ler e escrever o mundo antes de enveredar pelas matérias escolares. Corriam os anos 1920, na então pequena e lúdica cidade capixaba de Cachoeiro de Itapemirim. Foi nessa época que um dos filhos do primeiro prefeito do município, Francisco de Carvalho Braga, começou a catar poesia por onde passava, como quem caça minhocas.

Nenhum outro fato que eu cite nesta boca de noite seria capaz de explicar inteiramente de onde o menino Rubem (Braga), futuro “pai da crônica moderna”, teria extraído a prosa poética que se tornaria referência na história da literatura brasileira.

Com 15 anos, Rubem foi morar no Rio de Janeiro, onde começou a escrever para o jornal Correio do Sul, pertencente à família Braga. É claro, não havia ainda a crítica social afiada ou o lirismo que o consagrou, mas a semente de tudo o que veio a seguir já estava ali. Todos os jornais estão bem guardados, com um colecionador da cidade de Cachoeiro.

Em 1928, quando o rapazola estreava seus dotes, Mario de Andrade desviava os olhos dos holofotes cariocas para a sua pauliceia desvairada, publicando o impagável romance Macunaíma.

Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Raul Bopp lançavam o movimento antropofágico, que tinha como porta-voz a Revista de Antropofagia.

São deste ano também A Bagaceira, de José Américo de Almeida, que inaugurou o Romance Regionalista no Modernismo brasileiro, e Martim Cererê, de Cassiano Ricardo. Ainda dava frutos a Semana de Arte Moderna, ocorrida seis anos antes.

Conto essa história para que percebam que a crônica (não só a de Rubem) foi se esgueirando, afoita, entre aqueles que escreviam para entrar para a posteridade, enquanto ela, humilde, teria de se conformar com a sua finitude. Primeiro, nasceu ligada à História, depois fez par com o Jornalismo (no Século XIX) e depois disso começou a colocar as garrinhas de fora… foi se tornando cada vez mais liberta e literária. Uniu ficção e fato, surpreendeu a parte empoeirada da crítica literária que a enclausurou no jornal impresso. Hoje, está em cada canto do país, em cada meio de comunicação, cada livraria. Importantes prêmios literários, como o Jabuti, por exemplo, renderam-se aos seus encantos e criaram a Categoria Crônica, que revelam tantos novos talentos.

Entre um dedo de prosa e outro, vou salpicando por aqui os feitos e fatos pitorescos de um gênero que, como Pierrô em carnaval de rua, aglomerou-se tanto (para usar um termo saudoso do velho “normal”) que virou epidemia (no bom sentido). Espero dividir com vocês a novela da crônica, que nasceu tão mirrada quanto o riacho Amarelo em época de seca, mas um belo dia se viu mar de águas profundas e permanentes. Convido vocês, então, para o mergulho.

Crônica

MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA

por Tuty Osório

Aguda, uma pequena vila no litoral norte de Portugal. O furor nos anos 50, palco das férias das famílias de classe média alta do Porto. No clube local davam-se bailes onde os jovens se divertiam em matinês dançantes. Muitas paixões souberam-se ali. Muitas decepções, também.

Saias rodadas e montadas em sobrepostas anáguas. Óculos escuros em formato gatinha.

Nos 70, a Aguda abrigou os repatriados das colônias, chamados de retornados. Criança ainda, brincava de cinema entre os pinhais que separavam as casas do areal e do mar. Encenava peripécias inspiradas nas paixões de Jennifer Jones e Gregory Peck. Sem dimensionar o drama que seu próprio mundo vivia. O chão de tábua, as louças antigas do banheiro, a cozinha escura que recebia a padeira cheirando a peixe, rareada de banhos por hábito.

Miramar, vila vizinha, foi revelada décadas depois, na leitura das Memórias do João de Oswald. Modernas antropofagias da arte, em ritmo de contemporaneidade. Maria em homenagem a João. Aguda em memória do que tem muita vontade ser crônica pra não ser esquecida. Raízes da mesma fantasia revestida de alegre chocolate. E de angustiada nostalgia.

 

TRILHAS

Memórias Sentimentais de João Miramar, por Oswald de Andrade, editoras diversas, desde 1924.

Memórias Sentimentais de Maria Aguda, dez crônicas, um conto e um ponto, por Tuty Osório, Edição da Autora, (em preparação), 2021.

 

Foto: Nilton Trança
Conto

LÍGIA

por Tuty Osório

Bonita, olhos verdes enormes, parecida uma gata do mato. Chegou num carro mil, dirigia devagar, estacionou debaixo dos coqueiros e pediu um quarto. O pousadeiro pegou as chaves e acompanhou-a, indiferente, como a todos os passantes.

Embora houvesse nela um mistério perfeitamente justificado pelo tédio que muitas vezes mandava ali. Uma forasteira alta, vistosa, chegando no meio da tarde sozinha inspirava ficções.

Trancou-se no quarto e não saiu mais. Não pediu jantar, não desceu pro café na manhã seguinte.

 

Nem almoço. Nem de tarde. Nem de noite outra vez. Varou mais um dia e o pousadeiro assustou-se. Não se metia com os hóspedes. Só que aquilo era muito estranho. O silêncio nas vezes que colou o ouvido na porta. Dava pra esperar mais não. Que a mulher reclamasse, ia bater.

Bateu, bateu, bateu. Nada. Umas horas depois bateu novamente. Mais nada. Daí bateu foi um desespero no coração. Porta abaixo e vestida de branco neve, a gata dormia um sono eterno. As caixas de comprimidos, abertas, espalhadas pela cama, pelo chão.

 

TRILHA

Tão triste como ela, por Juan Carlos Onneti,(novelas breves),

Companhia das Letras, 1990

Vamos ver o por do sol, Lygia Fagundes Teles

Ilustração: Manuela Marques
o Bem Viver

A PARTILHA DO POSSÍVEL

por Camilla Osório de Castro

A Biblioteca comunitária CasAvoa, braço da Livro Livre Curió*, retomava naquela quarta-feira suas atividades presenciais, após um ano e meio de pandemia. Chegamos ao entardecer e as cadeiras estavam dispostas em meia lua no quintal, convergindo para o muro branco embaixo da grande árvore, onde faríamos a primeira exibição pública do filme Semeando nas Dunas: Agricultura Urbana em Fortaleza. Era também a nossa primeira exibição pública pós-pandemia, o primeiro encontro, a primeira partilha. Enquanto a noite caía, as participantes do Clube de Leitura das Mulheres começavam a chegar e a sentar para aguardar a projeção. Podíamos ver as expressões entusiasmadas dos olhos e adivinhar sorrisos por trás de suas máscaras.

Estranho fazer uma sessão assim. Bonito fazer uma sessão assim.

Iniciamos a projeção. O filme conta as histórias de Hugo, Alexandre e Rafael, três moradores de Fortaleza que praticam a agricultura em seus quintais. Não é uma agricultura perfeita, nas condições ideais de temperatura e pressão. É uma agricultura possível, que investiga soluções para cada problema que surge. Acolhendo, generosamente, o desafio e os caminhos lançados. O coração da prática está no ciclo virtuoso que ela possibilita – os resíduos de uma cozinha lançados ao galinheiro, os resíduos do galinheiro lançados às minhocas, os resíduos das minhocas lançados às mudas de hortaliças, que por sua vez retornam à cozinha.

Tudo muito simples, muito possível e, por isso mesmo, revolucionário.

Finalmente, a troca, a partilha. A sessão de cinema é sempre um momento coletivo e transformador, mesmo quando não há debate. Com o debate, no entanto, surgem sentidos e discursos que não estavam dados. O que cada um sentiu passa a ser povoado dos sentimentos do outro.

As experiências anteriores, os saberes construídos, podem ali ser de todos. Uma fala muito repetida ficou em mim: “Muita gente que não gostava de planta vai sair daqui querendo encher a casa com elas”. Uma semente de ideia, de incômodo foi ali plantada. Quem sabe que transformações podem surgir? Nunca mais seremos as mesmas depois de estarmos juntas naquela noite.

* Livro Livre Curió é uma biblioteca e centro cultural localizada no bairro do Curíó na periferia de Fortaleza.

 

TRILHA

Semeando nas Dunas (documentário), por Mar de Fogueirinha, em finalização. 

Projeto Apoiado pelo VIII Edital das Artes de Fortaleza- Lei nº 10.432/2015

CURADORIAS

The Lovely Bones, publicado no Brasil como Uma vida interrompida: Memórias de um anjo assassinado, conta a história de Susie Salmon (como o peixe). Uma menina estuprada e assassinada aos 14 anos, narrando o processo de luto de seus amados, observando, do céu, suas traje- tórias. O livro, com sua escrita simples, absurdamente encantadora, sendo ao mesmo tempo impiedosa e direta, convida o leitor a pensar, não somente sobre os mortos, mas sobre os vivos e sobre as mães e sobre os amantes e sobre tudo. Uma leitura intensa e reflexiva, semeando uma contemplação especial do significado da morte. Mais tarde, foi produzida a adaptação Um olhar do paraíso, contando com Saoirse Ronan como Susie. Embora questionado como adaptação, o filme derrete em sensibilidade e construção narrativa, deixando o espectador desidratado de tanto chorar (posso estar falando ou não por experiência própria). Recomendo tanto a leitura quanto a adaptação.

Trecho do livro:

“Então corri na ponta dos pés até os fundos da casa, mas quando cheguei descobri que a porta da varanda estava escancarada, quando vi minha mãe, esqueci-me completamente de Grace Starking. Eu gostaria de poder explicar melhor que isso, mas eu nunca tinha a visto tão imóvel, tão ausente de alguma maneira.

Lá fora, na varanda fechada por uma tela, ela estava sentada em uma cadeira dobrável de alumínio frente para o quintal dos fundos. Segurava um pires, e em cima do pires estava sua habitual chícara de café. Naquela manhã não havia marcas de batom porque não havia batom até ela o passar para… para quem? Nunca havia me ocorrido fazer aquela pergunta.

Para meu pai? Para nós? Holiday estava sentado perto da bacia de pássaros, ofegando alegremente, mas ele não me viu. Estava olhando para a minha mãe.

O olhar dela atendia até o infinito. Naquele instante, ela não era minha mãe, mas alguma coisa separada de mim. Olhei para o que eu nunca tinha visto, o nada a não ser mamãe, e vi a pele macia e empoada de seu rosto – empoada sem maquiagem – macia sem ajuda. Juntos, suas sobrancelhas e olhos formavam um conjunto. ‘Olhos de Oceano’, assim a chamava pai quando queria uma de suas cerejas cobertas de chocolate, que ela dava escondidas no armário de bebidas como sua iguaria particular. E agora eu entendia o nome. Eu pensava que era porque seus olhos fossem azuis, mas agora via que era porque eram infinitos de um modo que eu achava assustador. Tive uma intuição naquela noite, não um pensamento formado, uma intuição de que antes de Holiday me ver e sentir meu chei- ro, antes da bruma orvalhada por cima da grama se evaporar e da mãe dentro dela acordar como fazia todas as manhãs, eu deveria tirar uma foto com a minha nova máquina. Quando o filme revelado chegou da oficina da Kodak em um envelope especial pesado, pude ver a diferença imediatamente. Havia apenas uma foto na qual minha mãe era Abigail. Era aquela primeira, tirada sem ela perceber, capturada antes do clique assustá-la e transformá-la na mãe da menina que fazia aniversário, na dona do cachorro feliz, na mulher do homem carinhoso e na mãe também de outra menina e de um adorado menino. Dona de casa. Jardineira. Vizinha bem humorada. Os olhos da minha mãe eram oceanos e neles havia perda. Pensei que tinha a vida toda para entendê-los, mas só tive aquele dia. Uma vez na terra eu a vi como abigail, e depois deixei a visão retroceder naturalmente – meu fascínio contido pelo desejo de que ela fosse minha mãe e me abraçasse como essa mãe.”

TRILHAS

Uma vida interrompida: Relato de um anjo assassinado,

Alice Sebold, 2002.

Um olhar do paraíso, 2009.

TIRINHA

Sônia Valéria cabulosa

Manu
Manu

CREPÚSCULO

Faz de conta que ainda é cedo

O domingo avança voltando a nos dizer que todos os dias deveriam ser domingos. Embora saibamos que sem o contraste com a segunda, o domingo perde sua candura, sua graça de inocente preguiça. A semana se anuncia. Há mais expectativas que certezas. Que seja um domingo com o conhecimento da Física. A sabedoria da Filosofia. A paz da fé. E o fervor das crenças em semanas melhores. Depois deste e de todos os outros domingo que nos aguardam com mais abraços e menos solidão.

Obrigada por virem com a gente até aqui,

Beijos.

Tuty e trupe.