Edição N. 07 - 29/08/2021
Orquestra

Realização FORA DE SÉRIE percursos culturais.

Textos: Antônio Carlos Queiroz, Camilla Osório de Castro, Manuela Marques, Miguel Boaventura, Sarah Coelho, Tuty Osório, Ana Karla Dubiela, Jô de Paula, Sérgio Pires, Francisco Bento.

Fotografia: Celso Oliveira, Camilla Osório de Castro, Manuela Marques, Fernando Carvalho

Projeto Gráfico e Diagramação: Manuela Marques com consultoria de Fernando Brito.

Ilustrações e Quadrinhos: Manuela Marques, Mário Sanders, Alice Bittencourt

Revisão: Camilla Osório de Castro.

Mídias sociais: Beatriz Lustosa.

Desenvolvimento de Site: Raphael Mirai

 
ALVORADA

MESMO QUE UNS NÃO QUEIRAM SERÁ DE OUTROS QUE ESPERAM VER O DIA RAIAR...

Inevitável a grande emoção de ver a vacina chegando aos adolescentes. É como o futuro agora, conceito carregação de campanha publicitária, e quem é publicitário, e tem memória, sabe do que falo. Pela primeira vez o FUTURO AGORA faz sentido como significante de um significado palpável. Onda divina, a revoada de seres com cabelos coloridos, vestimentas variadas, carinhas de anjos amadurecidos precocemente pela dureza dos tempos que vivemos. Tão concentrados na sua missão de receber a Pfizer irada e zuada, ordeiros, solenes em sua dispersão abençoada. Sob a batuta dos profissionais da saúde, lá se iam eles, um a um, injeção, foto, lágrimas, gratidão, união.

NÓS juntos, criadores e leitores, do Domingo à NOITE em 2021

ACQ

OS OLHOS DE RAIOS X DE FERNANDO PESSOA & COMPANHIA

Antônio Carlos Queiroz, jornalista e bibliófilo

E se eu disser a vocês que o Fernando Pessoa tinha visão de raios X? Numa carta enviada no dia 24 de abril de 1916 à tia Anica (Ana Luísa Pinheiro Nogueira, irmã de sua mãe), ele contou que viu, certa manhã, no café A Brasileira do Rossio, “as costelas de um indivíduo através do fato (paletó) e da pele”.

 

Passado o espanto, o esclarecimento: o Fernando, que se dedicou com a tia a promover sessões “semi-espíritas”, para contatar o espírito do tio-avô Gualdino, relata nessa carta que estava “desenvolvendo qualidades não só de médium escrevente, mas também de médium vidente”.

 

Abro aqui parênteses para imaginar a gargalhada do Alberto Caeiro, materialista empedernido, ao saber desse comentário, assim como, outra vez, havia gargalhado do julgamento que dele fizeram como poeta materialista: Uma vez chamaram-me poeta materialista, / E eu admirei-me, porque não julgava / Que se me pudesse chamar qualquer coisa. / Eu nem sequer sou poeta: vejo.

 

Prossigo com o registro do Pessoa: “Começo a ter aquilo a que os ocultistas chamam ‘a visão astral’, e também a chamada ‘visão etérica’. Tudo isto está muito em princípio, mas não admite dúvidas. É tudo, por enquanto, imperfeito e em certos momentos só, mas nesses momentos existe. [ Há momentos, por exemplo, em que tenho perfeitamente alvoradas (?) de ‘visão etérica’ — em que vejo a ‘aura magnética’ de algumas pessoas, e, sobretudo, a minha ao espelho e, no escuro, irradiando-me das mãos. Não é alucinação porque o que eu vejo outros vêem-no, pelo menos, um outro, com qualidades destas mais desenvolvidas. Cheguei, num momento feliz de visão etérica, a ver na Brasileira do Rossio, de manhã, as costelas de um indivíduo através do fato e da pele. Isto é que é a visão etérica em seu pleno grau. Chegarei eu a tê-la realmente, isto é, mais nítida e sempre que quiser?”

 

Ora, muito mais interessante do que essa suposta capacidade de perceber “auras magnéticas”, e de brilhar no escuro como sucata de Césio 137, foi a eleição que Fernando Pessoa fez dos olhos como recurso central de sua poética, dele mesmo e de seus heterônimos e semi-heterônimos.

 

Num poema de 1932, Ele Mesmo compara os olhos e a razão (“olhar de conhecer”), para ele dons do Criador:  

 

(…)

Deu-me olhos para ver.

Olho, vejo, acredito.

Como ousarei dizer:

“Cego, fora eu bendito”?

 

Como o olhar, a razão

Deus me deu, para ver

Para além da visão

Olhar de conhecer.

 

Se ver é enganar-me,

Pensar um descaminho,

Não sei. Deus os quis dar-me

Por verdade e caminho.

 

Fernando Pessoa devora o mundo com os olhos. Numa de suas páginas íntimas, provavelmente de 1910, registra: “Há poesia em tudo — na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a também na cidade — não o neguemos — facto evidente para mim enquanto aqui estou sentado: há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros nas ruas em cada movimento ínfimo, vulgar, ridículo, de um operário que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta de um talho (açougue)”.

 

O “espetáculo do mundo”, porém, ele o vê, com reforço, por meio do que chama seu “sentido interior”: “O meu sentido interior de tal modo predomina sobre os meus cinco sentidos que — estou convencido — vejo as coisas desta vida de modo diferente do dos outros homens. Existe para mim — existia — um tesouro de significado numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato. Encontro toda uma plenitude de sugestão espiritual no espectáculo de uma ave doméstica com os seus pintainhos que, com ar pimpão, atravessam a rua. Encontro um significado mais profundo do que os terrores humanos no aroma do sândalo, nas latas velhas jazendo numa montureira, numa caixa de fósforos caída na valeta, em dois papéis sujos que, num dia ventoso, rolam e se perseguem rua abaixo. E que poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus em plena consciência da sua queda, atónito com as coisas. Como de alguém que conhecesse a alma das coisas e se esforçasse por rememorar esse conhecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não com estas formas e nestas condições, mas de nada mais se recordando”.

 

Essa visão espectral, que vislumbra “a alma das coisas”, é o exato oposto do olhar de Alberto Caeiro, o poeta panteísta da Natureza, que toma as coisas pelo que elas parecem ser, como ele diz num poema de O Guardador de Rebanhos:

 

(…)

«Constituição íntima das coisas»…

«Sentido íntimo do Universo»…

 

Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.

É incrível que se possa pensar em coisas dessas.

É como pensar em razões e fins

Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores

Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

 

Pensar no sentido íntimo das coisas

É acrescentado, como pensar na saúde

Ou levar um copo à água das fontes.

 

O único sentido íntimo das coisas

É elas não terem sentido íntimo nenhum.

 

Não acredito em Deus porque nunca o vi.

Se ele quisesse que eu acreditasse nele,

Sem dúvida que viria falar comigo

E entraria pela minha porta dentro

Dizendo-me, Aqui estou!

 

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos

De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,

Não compreende quem fala delas

Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

 

Mas se Deus é as flores e as árvores

E os montes e sol e o luar,

Então acredito nele,

Então acredito nele a toda a hora,

E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

(…)

 

Alguém já deve ter explorado os pontos de contato do  Caeiro com o Bashô e os outros mestres do haicai, hipótese que merece uma boa pesquisa. Antes, quero ler as 1088 páginas da novíssima biografia do Fernando Pessoa, publicada pelo escritor, tradutor e crítico americano-português Richard Zenith (Liveright Publishing Corporation).  

 

Vou parando por aqui antes que este comentário, que eu pretendia relâmpago, acabe virando uma dissertação sobre as múltiplas visões do vidente Fernando Pessoa, que tem um livro sobre a volta de Dom Sebastião escrito “à beira-mágoa… com os olhos quentes de água”. 

 

ENCONTROS

Lançamos hoje o Espaço Encontros no Domingo à NOITE. Ouvindo especialistas, vamos trazer informação sobre assuntos diversos. Às vezes nem tão novidadeira, contudo exposta aqui para degustar e renovar curiosidades. Nossa primeira convidada é Andrea Bardawil, regente de terapias inovadoras inspiradas na ancestralidade – a Dança que ela nos revela toma a cena contemporânea, vinda de longevas datas. Está na nossa formação, na nossa cultura e na cultura de todos os povos do mundo. Tuty Osório provocou e Andrea, generosamente, atendeu.

Bom encontro, pois!

Abraços, do Miguel Boaventura 

CHACOALHAR A CONSCIÊNCIA

A Dança Terapia é um processo terapêutico que se funda na linguagem da dança. Não existe uma abordagem única, uma única forma de se trabalhar.

 

 Cada terapeuta parte da trajetória que lhe é mais familiar para desenvolver uma possibilidade de trabalho terapêutico a partir da linguagem da dança.

 

Todo o mundo pode e deve dançar. Isso não envolve nenhum conhecimento, nenhuma habilidade, envolve apenas a vontade, a necessidade.

 

Quando a gente dança move tudo o que já foi e tudo o que ainda vai ser. Nada fica no mesmo lugar.

 

Bota uma música, chacoalha o corpo, chacoalha tudo. Isso vai produzir outras substâncias, vai facilitar que seu ponto de vista se altere e você consiga ver as coisas de uma outra forma.

 

Arte é um sistema codificado de técnicas, um processo de construção de linguagem, ou seja, de símbolos, signos, códigos, que esses sim, exigem uma maior habilidade. Por isso que é tão importante diferenciar a dimensão expressiva da dimensão artística.

 

Eu desenvolvo uma abordagem que eu chamo de A Construção Poética do Visível que é um trabalho corporal que se funda na educação somática, em várias técnicas de consciência corporal e também em trabalhos de improvisação. Essa é uma prática conduzida porque tem como fim possibilitar, não só uma dimensão integradora, entre corpo e mente, como também um mergulho num processo de autoconhecimento.

*Coreógrafa e Arteterapeuta trabalha com as técnicas que desenvolveu ao longo de 30 anos de dança. Primeiro como bailarina, depois como coreógrafa, fundou uma Companhia que vai completar 30 anos, A Companhia da Arte Andanças foi esse espaço para trabalhar com pesquisa de linguagem, com muitos laboratórios corporais.

fotos: Redes sociais Andrea Bardawil

Qualquer pessoa pode participar, não precisa ter uma experiência prévia, mas é muito importante que seja conduzida para ter mais segurança de se jogar, de abrir as portas e janelas dos seus porões.

 

Na Construção Poética do Visível são dois eixos principais. Técnicas de educação somática e técnicas de improvisação, de composição.

 

Educação somática consiste em várias técnicas que surgiram no século XX, com o objetivo de possibilitar uma maior integração entre corpo e mente. Fortalecer, potencializar, essa sensação de unidade. Existem várias, algumas mais conhecidas, como Pilates, RPG. Outras menos conhecidas, como Eutonia, Técnicas de Alexander.

 

Trazemos a educação somática para chegar na parte prática da nossa abordagem, junto com técnicas de improvisação onde eu trabalho muito aspectos mais lúdicos, para que a gente consiga liberar essas emoções que estão mais escondidas, mais reprimidas – acessar, liberar e transformar.

 

Com as técnicas de educação somática e com as técnicas de improvisação a gente consegue fortalecer uma experiência mais criativa, fazer com que o movimento do corpo desenhe, crie uma dimensão poética no campo do visível. Acessando essa dimensão do invisível.

 

A principal dica que eu poderia dar é dancem, dancem muito, dancem sempre.

 

“Dancemos, dancemos, ou estaremos todos perdidos”, disse Pina Baucsh, uma grande artista da contemporaneidade.

 

Vencer essa dimensão de paralisia que se instala na gente, que se instala na nossa alma, tantas vezes. Dance como for, aonde puder, da forma que for.

SOBRE CRÔNICAS – NA BOCA DA NOITE

O CUPIM CHEGA À ACADEMIA

Por Ana Karla Dubiela

foto: Divulgação

Amanheci hoje sem saber se prefiro ser natural do Cairo, ser  fêmea do cupim ou escardinchar a vida de alguém. Não, não engoli nenhum dicionário, apenas resolvi dar umas voltas na tal “cultura de almanaque”, que de vez em quando salva um cronista da falta de assunto. Aquela cultura que não paga nossas contas, não serve para quase nada, mas impressiona. Só não é cultura inútil porque há sempre quem dela se banhe para fazer bonito numa roda de conversa (já pensou você dizer a sua crush que ela é pulquérrima? O queixo dela ia cair…). De uns anos para cá, está ficando cada vez mais difícil se entregar aos prazeres da falta do que fazer, como ler um almanaque e bancar o sabido depois, por exemplo.

Pois houve uma época, mais precisamente no século passado, em que escritores de prestígio, como Manuel Bandeira e seu mais ardoroso fã, Rubem Braga, dedicaram crônicas inteirinhas aos conhecimentos que para nada servem. Manuel Bandeira, mais passado nos anos, publicou “A fêmea do Cupim”, na qual descreve o dia em que passou pesquisando qual o nome que se dá à esposa daquele que rói nossas madeiras. Rubem Braga, gaiato como ele só, publicou “Nascer no Cairo, ser fêmea do cupim” aos 38 anos, em 1951, na coletânea campeã de vendas Ai de ti, Copacabana. Então, me perguntei: quem “copiou” a ideia de quem?

Pesquisadora inexperiente, raciocinei que pela diferença de idade entre eles – e também  pela admiração do Braga pelo poeta modernista, certamente Rubem Braga teria lido Bandeira e ressuscitado a sua fêmea do cupim. Peeeeeen! Eu estava errada. Rubem Braga não citou o amigo poeta porque escreveu sua crônica dez anos antes de Bandeira publicar “A fêmea do cupim”, em 1961.  Com certeza, Bandeira escardinchou (PS: procure o Aurélio!) nos escritos do cachoeirense para escrever seu texto e, de quebra, homenagear o amigo.   

Mas você deve estar se perguntando, e com toda a razão do mundo: por que um escritor perde preciosas horas escrevendo uma crônica sobre assunto tão insignificante? E uma segunda pessoa se vale do tema para publicar outro texto sobre esta tolice? Pior: por que uma pesquisadora e jornalista haveria de se deter sobre algo que não interessa e ainda arremata a besteira em um terceiro texto? 

Definitivamente, não sei. Pode ser que eu escreva uma tese, quem sabe? Talvez algo sobre a importância da fêmea do cupim na literatura do século XX e suas perspectivas teóricas na contemporaneidade. Teria tanta importância quanto certos estudos acadêmicos, que deveriam mesmo ser comidos pelo cupim. Mas para poupar sua paciência – e a minha – vou apenas dar a informação crucial, aquela que irá mudar sua vida para sempre: a mulher do cupim atende pelo nome de arará. E voa, como o tempo que perdemos até aqui.

 

 

foto: Divulgação
CONTO

DEUSES TRANSVERSAIS

Por Tuty Osório

foto: Fernando Carvalho

-Mãe? Tá escutando?

-Tô, né filha. Só um pouco ligada aqui no trânsito porque tô dirigindo. E nesse horário tem muito carro, é lusco-fusco. Final de tarde, sabe como é…

– Fiz uma lista do que quero ganhar no aniversário.

-Filha…Já te falei que é deselegante…Tem que deixar cada um ficar à vontade pra escolher…Fica parecendo imposição, que o que importa é o presente em si e não a intenção da pessoa em presentear…

-Mas mãe, as tias sempre perguntam. Eu fico sempre sem saber o que dizer. Este ano já fiz a lista, mais prático, né?

-É. Faz sentido. E o que tem na lista, posso saber?

-Então, estava te falando. Tonalizante azul da Keraton porque o que usei é paia e está deixando meu cabelo verde. Coisas de pintura que é sempre bom. Tintas, telas. Uns livros específicos e uma bota de combatente.

-Bota de combatente? Taí uma coisinha que vou proibir o povo de te dar! Que baixo astral filha! Alusão à guerra você sabe que sou contra! Odeio isso! Não entendo como você pode gostar!

-Nada a ver com guerra mãe. Eu gosto porque é bonito. É uma questão estética. Uma estética de geração.

-Estética alienada, isso sim…

-Que besteira mãe. Os punks usam bota de combatente. Você não é anarquista? Pois então?

-E o que tem a ver punk com anarquismo, pelamor?

-Tudo, Mãe. Os princípios do movimento punk são inspirados no anarquismo. Senão seria só um bando de gente vestida de doidinho, né?

-Bom…Bota de combatente, é? Me deixa pensar um pouco, tá? Não pressiona…

RITOS

PEDAÇOS NOSSOS

Por Sarah Coelho

fotos: instagram @tantocelebracoes e @sarahoccoelho

Todo mundo possui um pequeno museu do afeto. São recortes, álbuns de fotografia, ingressos de shows e pétalas ressecadas. Lembranças aleatórias que costumam ficar guardadas em alguma caixa bonita na parte de cima do armário.

 

Ainda que não estejam à vista, para quem os guarda é inquestionável a preciosidade destes objetos. Há uma aura meio mágica no fato de segurarmos de novo aquilo que, há pouco ou muito tempo, em outras mãos queridas estava. São provas, resquícios de nossa história.

 

As carteirinhas de estudante que denunciam que o tempo é mesmo um senhor tão bonito. Uma foto da família completa, nos anos 80, que por algum motivo virou preferida. Talvez porque, de repente, encontrar todo mundo virou tarefa árdua. A pulseirinha usada pela filha na maternidade. Algo palpável para quando for preciso lembrar que filhos crescem… e voam. Álbuns e sorrisos memorizados. O chapéu do vovô, junto com seus livros de poesia. Flores secas que decoraram dias especiais. O ingresso do cinema aonde um primeiro beijo aconteceu. As dores. Junto delas, um lembrete para dias nublados: você já sobreviveu antes. Uma caixinha de música dada ao pai, que virou herança quando ele partiu. Não é que é verdade que tudo o que vai volta? O estetoscópio da mãe falecida. Se auscultasse sentimento, indicaria sempre o mesmo diagnóstico: saudade. 

 

Enquanto escrevo este texto, brincando com as palavras entre memórias que não são minhas, concluo que os que dizem não possuir uma caixa dessas, estão redondamente enganados: em todo coração, há uma guardada.

 

TRILHA

Viva a vida sem medo de amar. De recordar. De ser um pouquinho piegas nas atitudes cotidianas de se importar em ter quem guardar.

O BEM VIVER

A TERRA

por Camilla Osório de Castro

 

foto: Celso Oliveira

Setembro de 1987. A Câmara dos Deputados está lotada, discutem-se os termos da futura Constituição Cidadã do Brasil ( CF/88). Do púlpito, um jovem de terno passa tinta de jenipapo no rosto enquanto discursa. Era Ailton Krenak, hoje um senhor de 67 anos, escritor e ativista pelos direitos dos povos indígenas no Brasil. A tinta de Jenipapo é utilizada na cultura do povo Krenak para rituais de luto e representava ali o luto pelas ameaças que sofriam os povos originários do Brasil – por não ter seus direitos contemplados naquela que pretendia-se a constituição de todos, por isso, a cidadã.

O discurso de Krenak, naquele dia, tratava em especial da discussão acerca dos direitos daqueles indígenas que estavam sendo considerados “aculturados”, principalmente os desaldeados. Após intensa mobilização e o impactante discurso, a CF/88 nasceu com um capítulo dedicado à proteção dos povos indígenas, mas não houve um só dia em que estes direitos não fossem ameaçados pelas práticas abusivas de governos, garimpeiros e fazendeiros.

 

Agosto de 2021. Uma mobilização nacional reúne indígenas do Brasil todo. Eles acampam em Brasília e protestam todos os dias na porta do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. São duramente reprimidos pelas forças policiais. São vergonhosamente ignorados pela imprensa. Reivindicam o direito às terras ancestrais de seus povos, ou o que sobrou delas. O STF deverá retomar em primeiro de setembro o julgamento da reivindicação dos ruralistas por um marco temporal que limita o direito assegurado pela constituição aos indígenas, como os donos originários da terra. O marco é justamente 1988, só valeriam as terras ocupadas por indígenas naquela data.

 

“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” é o que diz o parágrafo único do art1º da CF/88.

 

Hoje eu convido os leitores a refletir: o que temos feito nós, o povo, com o poder que emana de nós? Por que temos permitido que povos originários sejam tratados como menos povo e com menos poder? Que forças individuais e coletivas podemos mobilizar para evitar que mais uma vez o luto cubra todos os rituais e a memória nos fale apenas de dor?

TRILHA

Constituição do Brasil – Edições do Senado – Em constante atualização desde 1988

BACHIANAS E COMPANHIA

PORTAIS DA BONOMIA

Por Francisco Bento

Não me lembro se já vos confessei. Sou um noveleiro viciado e deslumbrado! Amo de paixão seguir novela. Em especial as das 6 da tarde, da Globo, na minha opinião e pelo que soube até na opinião do irreverente Gregório Duvivier, ator do Porta dos Fundos, as de maior qualidade de dramaturgia e produção. As das 6, então!!! São sempre temas históricos ou existenciais, ou ambos. Lado a Lado, A Vida da Gente, Sete Vidas, Cabocla, Ciranda de Pedra, Cordel Encantado.

Estreou este mês mais uma desse tipo. Nos Tempos do Imperador, que pretende lembrar Dom Pedro II e todo a simbologia que resgataria a nossa razão de existir, como brasileiros. Aguardei Nos Tempos com muita ansiedade. Pelo Imperador, pelos atores incríveis que protagonizam a trama, pela vontade de encontrar o Brasil, eternamente.

 

Todavia tenho me frustrado um pouco.

 

Esperava o Dom Pedro II que quis este país, mesmo com equívocos, nos holofotes da história. Não um herói, mas mesmo a seu modo, um brasileiro. E tenho encontrado um doidivanas apaixonado pela preceptora das filhas, como a tônica central…Fora outros equívocos, mais graves até. Tomara que voltem a si e melhorem. Tanto assunto importante…Pode até ter romances, lógico, trata-se de novela, mas custa dar uma canja maior para essa complexidade que é a Fundação do Brasil e a partir de que contradições viemos dar a esta praia contemporânea?

E da nostalgia da Canja, lembrei de um mapa bacaninha de cozinha histórica, que já me desviei demais do assunto dessa coluna, igual fez a novela… E o Serginho Pires, meu companheiro de Bachianas, vai puxar minha orelha!!!

 

Trata-se de A Canja do Imperador, maravilha criada pelo editor da saudosa revista Gula, Comer é a melhor vingança, lembram? J.A. Dias Lopes lançou essa delicia em 2004 e percorre dos Fenícios a Sophia Loren, passando por Salvador Dali, Carmem Miranda, Vinícius de Moraes, diversos reis de Portugal, e pelo Dom Pedro II, o inspirador da Canja do título. Já experimentei cozinhar o arroz de frango de Dom Miguel I para um pequeno grupo de amigas e amigos e foi sucesso, com algumas adaptações.

O fato é que a obra de Dias Lopes é um primor de memória e sabor. Aborda literatura, teatro, cinema, realeza e plebe, nada rude. Sempre a partir de personagens, o que a torna apaixonante e delirante. Vale a leitura e a aventura da experimentação. Como dizem: se joguem fruidores dos prazeres da mesa e da leitura! Miguel Boaventura que me desculpe!A consciência da alegria também é fundamental à revolução!  

TRILHA

A Canja do Imperador, por J.A.Dias Lopes, Companhia Editora Nacional, 2002

Todas as edições de Gula, a revista, nas bibliotecas de colecionadores ou no garimpo da Internet

TIRINHA

SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA

CREPÚSCULO

NÓS EM NÓS

foto: Celso Oliveira

No ano de 1985 assisti Caetano no Coliseu das Artes de Lisboa. Show de mais de duas horas, o público tanto gritou que Caetano voltou ao palco de roupão, long neck na mão e um cigarro. Sentou no banquinho que ainda estava por ali e pediu licença pra cantar, uma música certamente desconhecida, mas que lhe era cara e gostaria de mostrar. Surpresa de Caetano e surpresa minha, brasileira muito, apesar de nascida em Portugal, quando o público do Coliseu, em sua maioria português, sabia e cantou em coro uníssono.

“Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante.
E pousará no hemisfério sul, da América, num claro instante.
Depois de exterminada a última Nação Indígena.
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida.
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali.
Virá que eu vi.
Apaixonadamente como Peri.
Virá que eu vi.
Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee
Virá que eu vi.
O axé do afoxé Filhos de Gandhi.
Virá!
Um índio preservado em pleno corpo físico.
Em todo sólido, todo gás e todo líquido.
Em átomos, palavras, alma, cor
Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico.
Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto-sim resplandecente descerá o índio.
E as coisas que eu sei que ele dirá, fará
Não sei dizer assim de um modo explícito.
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi.
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee
Virá que eu vi´.
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá!
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico.
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto.
QUANDO TERÁ SIDO O ÓBVIO.”
Obrigada por estarem com a gente até aqui.
Tuty e Trupe