Edição N. 10 - 19/09/2021
Orquestra

Realização FORA DE SÉRIE percursos culturais.

Textos: Antônio Carlos Queiroz, Camilla Osório de Castro, Manuela Marques, Miguel Boaventura, Sarah Coelho, Tuty Osório, Ana Karla Dubiela, Jô de Paula, Sérgio Pires, Francisco Bento, Renato Lui, Marta Viana, Luna Vitrolira.

Fotografia: Celso Oliveira, Camilla Osório de Castro, Manuela Marques, Fernando Carvalho

Projeto Gráfico e Diagramação: Manuela Marques com consultoria de Fernando Brito.

Ilustrações e Quadrinhos: Manuela Marques, Mário Sanders, Alice Bittencourt

Revisão: Camilla Osório de Castro.

Mídias sociais: Beatriz Lustosa.

Desenvolvimento de Site: Raphael Mirai

 
ALVORADA

A TARDE FEITO UM VIADUTO

Quanto mais se contesta a dimensão essencial da educação e da arte na estabilidade econômica, justiça social e ampliação da saúde, mais fica evidente o quanto são indispensáveis e urgentes.

 

Betinho, o irmão do Henfil, bradava em prosa e voz que estava nas mãos da sociedade o combate à FOME. Que não se esperasse por governos, por políticas públicas. Que se agisse diretamente e pragmaticamente. Betinho teve oportunidade de transformar seus brados em prática e, de um modo ou de outro, a AÇÃO DA CIDADANIA, puxada por ele nos 90 do XX, sobrevive, crescendo, recuando, porém, sempre presente.

 

O mesmo se aplica à prioridade pela educação e pela arte. Temos que agir coletivamente, em uníssono, no público e no privado, promovendo o comum como um modo de vida.

 

Sem medo.

 

Ninguém vai tomar o seu carro, o seu apartamento, a sua pequena empresa. Você vai doar o seu tempo, a sua criatividade, a sua vontade de que seja dada à faxineira e ao motoboy a mesma oportunidade que você teve de estudar, ver pintura, ouvir musica e dançar. Ao jovem que perambula de guardador de carros e adormece na calçada, entorpecido sobre um colchão rasgado.

 

Você já imaginou como seria bem mais agradável um mundo onde ao invés do nocaute do crack, da fome e da humilhação, fosse a leitura a vencedora, levando o dito mendigo ao sono? Não ao relento mas sob um teto. Não temendo a violência, mas confiando num amanhã seguro e solar.

 

NÓS juntos, criadores e leitores, do Domingo à NOITE em 2021

ACQ

A reaparição de Cupido no quadro de Vermeer

Quase três séculos depois de ter sido encoberto por uma grossa camada de tinta, restauradores da Alemanha revelaram um Cupido nu no fundo da tela A menina lendo uma carta na janela do mestre holandês Johannes Vermeer.

 

Depois de quatro anos de restauro, a tela, agora mais detalhada e dramaticamente mais luminosa, foi apresentada ao público na exposição de dez obras de Vermeer ao lado de outros mestres da Era de Ouro dos Países Baixos, como Pieter de Hooch e Gerard ter Borch, inaugurada no dia 9 de setembro na Galeria de Pintura dos Antigos Mestres de Dresden, Alemanha. O evento foi prestigiado pela primeira-ministra Angela Merkel e pelo primeiro-ministro holandês Mark Rutte.

 

A menina lendo uma carta na janela é uma preciosidade especial entre as 35 obras-primas conhecidas de Vermeer. Escapou abrigada num túnel do bombardeio de Dresden pelos Aliados durante a Segunda Guerra, que não deixou pedra sobre pedra. Foi levada pelo Exército Vermelho para a União Soviética e devolvida em 1955 para os alemães.

 

A figura do Cupido aparece em outros quadros do pintor, mas neste, especificamente, o moleque está pisando uma máscara de teatro, o que abre novas interpretações para o quadro. O que significaria o gesto do pequeno deus? O fato de o amor superar obstáculos, como a hipocrisia, o engano, a desonestidade? A carta que a moça lê seria do noivo dela ou de um amante? 

 

Historiadores e especialistas nas artes da Holanda sempre caem na tentação da hipótese de Vermeer (1932-1975) ter conhecido o filósofo Bento de Spinoza (1932-1677), seu contemporâneo, separado dele por apenas 70 quilômetros. A hipótese ganha força com o fato de Spinoza ter sido um polidor de lentes de telescópios e microscópios, o que seria de grande interesse do pintor, que, segundo outra hipótese, teria usado uma espécie de camera obscura para projetar imagens sobre as telas para garantir sua fidelidade naturalística.

 

Verdadeira ou não a elucubração, muitos entendidos garantem que as obras de Vermeer têm uma visada imanente como a do filósofo, em que os olhos devoram o mundo não de uma janela mas desde dentro, no meio dele, colados a ele, como diz Marilena Chauí. Uma perspectiva bem diferente da dos pintores italianos, que contemplavam o mundo como se os olhos fossem espelhos.

 

Por outro lado, os italianos tinham a figura masculina como centro e medida da razão e da proporção. Para Vermeer, em contraste, a mulher comum, doméstica, é a figura central, e mais, a mulher autossuficiente, sem crianças por perto, surpreendentemente, como anota Svetlana Alpers em Arte da Descrição.

 

Filósofos e pintores nos ensinam a ler o mundo de maneiras diferentes, abrindo e fechando possibilidades! Mas o importante é…  

POESIA

O AMOR

por Luna Vitrolira

Julia Coppa para revista Cult 2018

o amor é feito bala perdida

que acerta um desavisado

 

ao cruzar a rua

ao dobrar a esquina

 

às vezes vem num soco

às vezes vem num grito

 

o amor às vezes é isso

uma panela de água fervendo

no rosto de alguém querido

 

às vezes esmola

às vezes migalha

 

que se devolve com um tiro

ou acaba em facada

 

o amor tem medo da vida

 

uma hora eleva

na outra arrasta

 

desconfia da sorte

tem medo da falta

 

o amor corresponde à entrega

com uma rasteira e às vezes mata

de tirania

de asfixia

de ciúme

de raiva

 

como alguém que se alimenta

e de repente engasga

REPORTAGEM ENSAIO

UM CÉREBRO PARA DECIFRAR O MUNDO

 (título emprestado de uma frase do ACQ)

por Miguel Boaventura

foto: Celso Oliveira

Que vos parece um cara que queria ser lembrado, principalmente, como um homem que amou profundamente? O planeta, seus bichos, a natureza, a vida, enfim? Este senhor, comprometido com a boniteza da educação, nas palavras da youtuber Rita Von Hunty, que, emocionada, nos apresenta a ele com muitas letras e algumas lágrimas, é patrono da educação no Brasil.

Rita, falando a convite da editora Record, nos lembra que ser patrono significa que não se consegue pensar educação sem passar pelo seu nome.

E educação só existe pensada, para se efetivar, então.

Senão vejamos. Autor de mais de 25 livros, o terceiro autor da área de humanidades mais citado do planeta. Teve a ele outorgado o título de Doutor Honoris Causa por mais de 27 universidades ao redor do mundo.

Foi professor na Unicamp, na PUC de São Paulo, na Universidade de Genebra, em Harvard, em Cambridge e na Universidade de Massachusetts. É o único brasileiro a constar como material básico das Universidades de Yale e, todas mais de prestígio, na língua inglesa.

Reconhecido como o principal nome da Pedagogia Crítica, tem o seu trabalho adotado, como base dos estudos de educação, em mais de 90 países. A Pedagogia Crítica é uma vertente que defende ser função da pedagogia formar sujeitos. Para que sujeitos formem conhecimento.

Isto porque, apesar de conceitos totalmente abstratos como o de  Mercado – que tem direito a ficar nervoso e a ditar a penúria da maioria, – serem citados como se existência concreta tivessem, o mundo é feito, sim, de pessoas.

O educando e o educador devem zelar por uma ética que a educação tem que seguir.

Esta é a síntese da filosofia propagada pelo senhor que lembramos hoje e que temos que lembrar diariamente, para nossa salvação. Um senhor que em 1962 alfabetizou, em 40 horas, 300 adultos, trabalhadores rurais em Angicos, no Rio Grande do Norte. Provando que é possível incluir quando se tem método e vontade.

O princípio da façanha é simples. Quem aprende é um sujeito. Todas as pessoas que aprendem trazem consigo jornadas, vivências, crenças, ninguém chega uma folha em branco. Respeitar saberes, entender realidades, partir de experiências é a melhor forma de construir conhecimento. Esse respeito garante educação total. Inclui a partir de cada universo. Tem a ver com realidade. Sem sofismas relativos a mérito, esforço, e todas essas fugas do essencial.

Precisamos de mais de 100 domingos para falar da obra monumental que nos traz diálogo, troca, responsabilidade e coragem.

Por ora fazemos uma homenagem aos cem anos do senhor de quem vos falo. Intelectual do ofício de ser professor. Que colocou a mão na massa, para nossa glória.

Paulo Freire, o brasileiro que nos orgulha, que nos ensina, que conosco aprendeu a nos ensinar. Que seja eterno o conhecimento que nos legou. Para nos lembrar que somos gente em movimento. Feitos, como ele, para amar e lutar por um mundo melhor.      

TRILHAS

Pedagogia do Oprimido e Obra Completa, (livros) por Paulo Freire, Grupo Record Editorial sob o selo Paz e Terra, em lançamento a partir de 2021

Recursos da Esperança, (livro), por Raymond Williams (tradução de Nair Fonseca e João Alexandre Peschanski), Editora Unesp, 2015

Tempero Drag, (vídeo), por Rita Von Hunty, no Youtube

CONTO

POR QUE NÃO MAÇÃS?

por Marta Viana

Gosto de dormir no meu quarto antigo, o único que fica na parte térrea da casa. Com banheiro, é grande, confortável e tem janela que dá para o quintal. A luz não o invade intensa pela manhã. Ali se acorda devagar.

Abri a janela cedo, como faço todos os dias. Vi os peixes nadando em todas as direções, seguindo, borbulhantes, os sinais luminosos. A mala que comecei a preparar estava no mesmo lugar. Todos aqueles livros e sapatos, claro, não irão caber. Penso que algo incrível pode acontecer e aí teremos uma solução para isto.

 

Flutuo até a goiabeira da minha infância. Visito-a sempre que quero conselhos. Ela palpita. Diz que eu não prenda tanto os cabelos. Gosta de me ver descabelada. Estou satisfeita, gosto de goiabas vermelhas.

Fecho a janela, pois escuto os apitos. Os pássaros, muitos deles, já chegaram e estão transportando a casa para a parte norte da cidade.  Eu e a casa seguimos felizes.

CRÔNICA

GÊMEA E GÊMEO

Por Tuty Osório

foto: Fernando "Azul" Carvalho

Na leitura curiosa de uma obra encantadora sobre monumentos históricos de Fortaleza, descubro que o Ministério da Educação e da Saúde já foram um só, em 1938, segundo a citação. Investigar a partir de quando e por quanto tempo, será tarefa para depois destas linhas, rabiscadas para espantar os tédios e os medos do domingo, quando a noite se aproxima.

 

Importa-me agora, compartilhar com vocês a sensação boa que essa descoberta me provocou. Sinceramente, parece-me fazer todo o sentido. Juntar educação com saúde, numa só voz, numa sinergia de esforços em combate à ignorância e, assim, garantir a vida com toda a qualidade que merecemos.

 

Sempre imaginei as escolas como uma imensa rede de atendimento às pequenas emergências do dia a dia.

 

Dores do corpo e da alma, dos alunos, dos pais dos alunos que para ali acorrem. Seria até uma maneira de atrair e combater a evasão. Oferecer médico, enfermeiro, remédio, psicólogo, fisioterapeuta, fonoaudiólogo. Podia ser um projeto de extensão das universidades na área da saúde e uma das etapas de residência dos profissionais.

 

Por outro lado, sonhei, também, com postos, UPAS e hospitais que oferecessem, em suas salas de espera, vídeos, teatro, música, dança, panfletos, com ensinamentos úteis e interessantes – alimentação saudável, não violência, cultura de paz, ciência aplicada ao cotidiano, utilidade pública, contação de histórias para crianças e adultos, ecoalfabetização.

 

Nem precisa de ministério. Basta a gente querer ver a irmandade geminiana desses dois elementos. Quanto mais informação, menos enfermidades. Quando mais saúde, mais acesso a conhecimento. Está provado. É só prestar atenção.    

Álbum Fortaleza Ilustrada, por vários autores e autoras, organizado por Raymundo Neto, Edições Demócrito Rocha, 2020 – livrariadummar.com.br

Relógios Falantes, por D. Francisco Manuel de Melo, Editorial Domingos Barreira, Porto – Portugal ( da biblioteca particular Osório de Castro, sem data, adquirido no sebo Domus, em Nampula, Moçambique, provavelmente em 1966)

CRÔNICA JOVEM

Por Renato Lui

Era meia noite e eu corria na direção do terminal, mal sabia eu da noite incrível e assustadora que estava por vir. Queridos leitores, podem não acreditar, mas sim isso aconteceu no terminal da Parangaba, em Fortaleza. O dia em que eu encontrei aquele morador de rua, trajado de jaleco, e com mini bandeiras grudadas em suas vestes. Mas antes disso, antes dele eu era apenas um menino que corria para não perder o seu ônibus.

 

Antes dele eu não me conhecia. Transpirando e ofegante, puxei moedas do meu bolso e passei pela catraca. Olhei de relance e vi meu ônibus partindo. O último ônibus da noite.   Eu estava destinado a dormir nos bancos frios daquele vazio terminal. Estava em desespero, mas por um segundo vi cabelos e barbas brancas…Um mendigo com um jaleco cheio de bandeiras costuradas à mão.

 

Aquela cena me prendeu. Uma vez pensei, sem querer, que na vida somos poetas, e conforme vamos escrevendo a vida, a cor sai do cabelo e risca o papel, até que, enfim, depois de tantos versos e estrofes, os brancos são a marca de um grande artista.

 

– Boa noite jovem, você tem fogo?

 

Suas mãos trêmulas seguravam aquele cilindro inflamável.

 

– Não, infelizmente!

 

– E nem deve ter, continue assim com os pulmões saudáveis.

 

O silêncio pedia e implorava por um diálogo. Fiz questão de atender a súplica.

 

– Desculpe a pergunta, mas porque o jaleco?

 

Ele me olhou empolgado.

 

– Rapaz, meu sonho era ser médico… A um tempo achei esse no lixo… Gosto de usar, dá um ar de seriedade ao cidadão.

 

Fiquei calado. Lembrei das palavras de minha mãe: “filho, quando tiver um sonho, vá até o quinto dos infernos para realizá-lo.”

 

 Lendo Dante, descobri que dos 9, o quinto dos infernos era o da Ira. Onde todos são obrigados a lutar entre si, até sobrar o vencedor. Aquele homem perdeu. Por quê?

 

– Eu vou tomar um cafezinho. Não tem um trocado pra me dar?

 

Raspei o troco da passagem em meu bolso.

 

Ele se despediu e se foi em passos lentos. Passei a noite pensando naquele homem. E pela manhã quando chegou meu ônibus, sentei na janela, belos raios de sol. Cocei os olhos de sono e lembrei: mas e as bandeiras?

Bom, isso eu nunca saberei. Meu palpite é que tem vários senhores e senhoras por aí, trajando seus sonhos, vestidos com a solidão e o abandono das ruas.

O BEM VIVER

TSUNAMI?

por Camilla Osório de Castro

 

A Grande Onda de Kanagawa, Katsushika Hokusai

A notícia de que o vulcão Cumbre Vieja está em alerta amarelo de erupção e que uma eventual ocorrência pode ocasionar um tsunami no Nordeste brasileiro ocupou noticiários e páginas de memes na última semana. Um dos memes que viralizaram na página Fortaleza Ordinária, no instagram, mostrava as passagens esgotadas para a serra de Guaramiranga, após o anúncio dessa probabilidade.

 

Para além do que há de risível nessa situação, cabe um olhar mais atento. Nosso país não tem histórico de eventos extremos, visto que o último tsunami que atingiu o Brasil foi há cerca de 200 anos mas ele se tornarão cada vez mais comuns neste século, devido a, já exaustivamente tratada, emergência climática.

 

A possibilidade de fuga pode tornar-se cada vez menos uma piada, diante de um desespero exagerado. E cada vez mais um dado da realidade.

 

Em agosto de 2020 o El País publicou uma matéria a respeito de um boom no mercado de bunkers, comprados por milionários, para se protegerem em possíveis situações de catástrofe. O boom foi impulsionado pela Pandemia de Covid-19, esse desconfortável lembrete de que as coisas podem, sim, sair do controle.

 

Assim como a possibilidade de pandemia por vírus respiratório, transmitido por animais silvestres, vem sendo prevista e alardeada por cientistas, há mais de 10 anos, sem que nenhuma providência preventiva fosse tomada, inúmeros outros riscos vêm sendo previstos e anunciados. Como o de erupção vulcânica.

 

O que aconteceria se os mais ricos, ao invés de investir em bunkers e exploração espacial, estivessem dispostos a colocar atenção e riqueza em soluções preventivas e coletivas? O que aconteceria se a classe média ao invés de comprar uma passagem para um lugar que passa a impressão de ser geograficamente mais seguro, em uma ilusão de proteção individual, colocasse sua energia e influência em pressionar governantes e parlamentares por soluções mais concretas e robustas?

 

Quanto ao vulcão e ao tsunami nordestino, não sabemos se a especulação passará de chiste. Contudo, quanto à Pandemia está claro que providências preventivas poderiam ter salvo muitas vidas, e ainda podem.

 

É difícil imaginar que, na prática, milionários tomariam alguma atitude além de tentar salvar a própria pele. Nós, no entanto, ainda somos a maioria. Neste momento em que nos encaminhamos para o pós-Pandemia e talvez estejamos no pré-tsunami, a sociedade civil organizada pode, e deve, utilizar seu poder de pressão.

 

Alguém na sua cidade já propôs adaptações nos padrões arquitetônicos de escolas, universidades e outros ambientes coletivos para permitir um melhor padrão de ventilação? E o home office? É uma realidade para que profissões, sob que condições? Já debateram as alternativas de desafogamento do transporte público? E se você mora no Nordeste, cadê o plano para o tsunami? Ao invés de comprar uma passagem, se é que você faz parte desse diminuto grupo com tal poder econômico, fique, lute, reclame.

 

Um dia pode ser que não haja mais para onde fugir.

TRILHAS

 O impossível, (filme) por Juan Antônio Bayona, longametragem, 2012

 American horror story Apocalypse, (Série) por Ryan Murphy, 10 episódios, 2018

BACHIANAS E COMPANHIA

UMA RECEITA DE DOCE

Sérgio Pires

Veronicas; Dona Terezinha, doceira; Alfenins; tapete da Dona Benícia; por Sérgio Pires

Sou festeiro e gosto de inventar. Daí resolvi comemorar meus primeiros 60 anos de vida em Pirenópolis, Goiás.  Precisei percorrer os 120km de Brasília até lá, uma meia-dúzia de vezes, para acertar os detalhes. Recepção para os 30 ou 40 convidados, que se aventurariam a encarar a estrada e cantar os meus parabéns.

Assim conheci muita gente boa. Dona Benícia, tapeceira, artista que desconhecia a dimensão do seu próprio talento, que fez um lindo trabalho para mim. Seu Sebastião do bufê, Dona Marlene dos doces de frutas cristalizadas e glaceadas, além das compotas como a de casca de limão ou a de cajuzinho do cerrado.

A loja de empadão goiano, perto da Igreja Matriz, do tio do marido da Tininha. Mas a figura mais marcante foi a doceira Dona Terezinha, lá da Vila Matutina.

Dona Terezinha, era uma doceira muito conhecida em Piri (fiquei íntimo da cidade), já estava meio aposentada e não aceitava mais grandes encomendas de doces. Mas a família a estimulou a atender o meu pedido. Não apenas de Alfenins, mas principalmente o de Verônicas. A palavra Alfenim, vem do Árabe “al-fenid” –  significa aquilo que é branco, alvo.

Aqui cabe um esclarecimento. Apesar de serem feitos com a mesma receita, Alfenins e Verônicas, há uma variação importante nos formatos.  Os Alfenins são esculpidos como figuras de flores, animais, pombas do Divino Espírito Santo, Nossa Senhora, coroa. Para a comemoração da Festa do Divino, recebem o nome de Verônicas, tendo o formato de medalhões, estampados com motivos religiosos, utilizando moldes de bronze ou chumbo, fabricados artesanalmente com imagens em baixo relevo.

Encomendei especialmente para mim.

As Verônicas são distribuídas pelo Imperador do Divino, em comemoração ao seu império, entre as virgens e as criancinhas. São as representações simbólicas da sua fé e devoção. Terezinha gostava de conversar e entre um café e dois pães de queijo me explicava a receita do doce, tão tradicional neste Goiás.

“A receita do Alfenim é fácil, é açúcar, água e um pouco de limão.” Acho que comentei um “só isso” que mexeu com os brios da veterana doceira. “Se fosse fácil qualquer um fazia! O difícil é dar o ponto de bala, quando fica um espelho! É preciso ter mão boa!”

E continuou me descrevendo a receita que envolvia cozinhar por 45 minutos todos os ingredientes até o ponto exato da calda, que só a experiência permitia conhecer, sendo que na sequência a massa deveria ser colocada em cima de uma bancada de pedra. Depois entendi que servia para um choque térmico.

Segundo Dona Terezinha, então, vinha a parte do estica e puxa, “bate a massa com as mãos, estica, dobra e estica e dobra até ficar um elástico branco. Depois é só cortar e modelar, mas tem de ser rápida, senão a massa seca e endurece”. Ufa! Que trabalheira!

Rindo com o meu espanto ela repetiu “Se fosse fácil qualquer um fazia! Tem muito mais!” Mas tem mais? “Sim! Se a doceira tiver a mão quente nunca que vai dar o ponto! Naqueles dias do mês também não vem me ajudar não! Fica longe da minha cozinha! Pessoa negativa, mal humorada desanda tudo!” Devo ter feito alguma cara de dúvida, porque ela logo, baixando a voz, me confidenciou “tenho uma vizinha que é só chegar aqui que a massa desanda e não dá o ponto”.

E continuou “mas no dia de bater a massa não pode estar fazendo muito calor. Frio também não pode. Se for chover, desista! Depois de moldados, os Alfenins e Verônicas têm de secar no sol por dois dias.”

Tentei fazer uma graça comentando que era necessária tanta coisa para a elaboração que só faltava rezar, e ela, com um olhar astuto, concluiu a receita “Falta não! E o que você acha que eu fico fazendo enquanto preparo os Alfenins? Eu rezo o tempo todo para que nada aconteça e que tudo dê certo”.

Dá para entender, devido a esta preparação trabalhosa, porque o Alfenim é um produto em risco de desaparecimento, sem continuidade pelas doceiras mais jovens.

Mas, e o vinho para harmonizar? Regra básica de harmonização com doces, o vinho de sobremesa tem de ter, no mínimo, a mesma doçura do doce. Difícil com tanto açúcar? Tente um Tokay de 6 puttonyos, um Icewine ou um Porto Lágrima.

E a festa dos meus 60 anos? Os 30 ou 40 convidados se multiplicaram em 120 e lotaram os jardins da casa do século XVIII onde passamos dois dias e duas noites comemorando.

TIRINHA

SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA

CREPÚSCULO

TANTO MAR

Há uma Manuela inspiradora além mar. Que inspirou nome, inspira alegria de preparar o Natal, inspira coragem, inspira combate à dor. Inspira resistência real, sobrevivência cotidiana, um dia de cada vez. Inspira fé.

 

À Manuela e a uma outra amiga que também agora luta, dedicamos o entardecer de esperança do Domingo.

 

A brisa que nos acarinha ao entrar devagar pela varanda.

 

À luz que se entrega à noite e pede uma canja à lua, se houver.

 

Obrigada por estarem com a gente até aqui.

Tuty e Trupe