Edição N. 16 - 31/10/2021
Orquestra

Realização FORA DE SÉRIE percursos culturais.

Edição Geral: Tuty Osório

Textos: Antônio Carlos Queiroz, Camilla Osório de Castro, Manuela Marques, Miguel Boaventura, Sarah Coelho, Tuty Osório,  Jô de Paula, Sérgio Pires, Francisco Bento, Renato Lui, Marta Viana, Alim Amina, Lia Raposo

Fotografia: Celso Oliveira, Camilla Osório de Castro, Manuela Marques, Fernando Carvalho

Edição de Fotografia: Manuela Marques 

Projeto Gráfico e Diagramação: Manuela Marques com consultoria de Fernando Brito.

Ilustrações e Quadrinhos: Manuela Marques, Mário Sanders, Alice Bittencourt.

Revisão: Camilla Osório de Castro.

Mídias sociais: Beatriz Lustosa.

Desenvolvimento de Site: Raphael Mirai.

 
ALVORADA

O LAMBARI DE DARWIN

foto: Adobe Stock

Não tem jeito. Por mais que tentem sempre tem Brasil para animar, contar e reavivar a memória. O maior museu de História Natural do mundo, em Londres, guarda e mostra as exuberâncias colhidas pelo cientista da Origem das Espécies, em 1836, em sua expedição a estas terras. As imagens da TV revelam o nosso exclusivo Mico Leão Dourado que simboliza, literalmente, a força destes lugares. Natural de uma pequena região, no interior do estado do Rio de Janeiro, o Belo macaquinho está em risco de extinção e conta com abnegados que lutam por ele. E ele luta por nós, olhos doces, manto solar, uma quase ingênua caminhada por entre os restos de mata atlântica, essenciais ao seu abrigo. Brasileiro, o Mico resiste escapando à violência, em evoluções de coragem e ternura.

Trilhemos mais um Domingo à NOITE em 2021!  

ACQ

Under the banner of sorghum and sugarcane

por Antônio Carlos Queiroz

ACQ Arquivo pessoal

I
I won’t be invoking any muses today –
Booze will be my muse!
Awake ye muse mine from the spirits’ spring!
… unless you come from the Fountain of
Youth, “drunkenness without wine” –
Let’s have a toast
to fly like a tipsy thrush –
to dance like a legless elephant –
to shout out like a woozy howler monkey –
to celebrate ourselves like a beery fruit fly –
Let’s have a toast all of us
children of Mother Nature
enthused by spirits,
luscious, tender spirits!
If not only we, howler humans,
do get drunk and sing,
not only we – perhaps –
may be poets either
on the Earth or on the Ether!
On a Bateau ivre maybe we are –

II
I sing nothing new –
Our grandpas and grandmas
and their archgrandpas and
archgrandmas have sipped their wine
to comfort themselves in sadness –
to warm the joy in their hearts –
to kindle their courage to face coldness –
to avoid or to forget daily tragedies –
I humbly sing what has been gloriously
sipped and sung by Kohelet, Lucretius,
Jesus Christ, Lǐ Bái, Omar Kayamm,
Dante, Camões, Cervantes, Shakespeare,
Bashō, Goethe, Pushkin, Heine, Emily
Dickinson, José Martí, Baudelaire,
Neruda, Borges and – Amen! – Bishop
Elizabeth plus Machado de Assis and
a thousand and one other poets
of the United and the Disunited Nations –
III
Wherever they are, Masters utter
the same matter, the same moon
by other meters by other means –
Wine is poetry bottled –
said Robert Louis Stevenson, from California –
Whisky is man’s best friend.
Therefore, whisky is the bottled dog –
said Vinicius de Moraes, from Rio –
My verse is my cachaça (1).
My verse is my consolation –
said Carlos Drummond de Andrade, also from Rio –
It’s ever time to apply Baudelaire’s
gentle, clever dope, from Paris:
So as not to be Time’s martyred slaves,
get drunk, get drunk over and over!
On wine, on poetry, or on virtue, as you wish.
IV
I toast to friends from all over the World
under the banner of two leaves of grass:
The red sorghum from China –
The sugarcane from Brazil –
Same name in both tongues:
Branquinha, the little white one –

A sip of cachaça and a sip of baijiu
reverently spilled on the ground:
same offering to the Earth and the Saints
for the grace of these grasses and this grain –
V
Wèi Gāo, gānbēi!
From this balcony we already see three moons!
– Four!
Okay, man, don’t get upset!
We see indeed four… or five moons!
The feijoada (2) was great, wasn’t it?
We already toasted the Saints.
It’s time to board!
Imagination is our helm, Gāo:
borderless reverie!
You know, as the moonlight
passes by our window, we master time,
“the sworn enemy of fantasy” –
Let’s fly, dance, shout out and celebrate
ourselves as we cross the Amazon
and the Yangtze: if these endless waters
were a brandy, we’d gulp them down!
We’d have the greatest toast of all times!
VI
Man, we don’t know about tomorrow,
but we can imagine it easily,
sitting here on this balcony
in the company of Lǐ Bái,
Dùfǔ, Yú Xuánjī and
Vinicius de Moraes,
just to drink, chat and see
the multiplying moon
as if our window pane
were a kaleidoscope –
as if our verse and tune
were a kaleidophone –
After all, we live a kaleidolife, isn’it!
At least under the banner of red sorghum!
At least under the banner of sugarcane!

 

1) Cachaça, pinga, cana or caninha is the
sugarcane spirit produced in Brazil.
It is used in the preparation of the
world-renowned cocktail caipirinha.


2) Feijoada is a dish consisting of a
black bean stew with various types of
pork and beef. It is served with farofa
(manioc flour toasted in butter and mixed
with meat or eggs), white rice, stewed kale
(Brassica oleracea, group Acephala), and
sliced oranges, among other side dishes.
It is a popular, typical Brazilian dish.

Agradeço também à minha ex-professora de inglês, Simone Lima, da época em que vim parar em Brasília no final dos anos 70, pela gentileza de revisar o meu poema.

DIA DE DRUMMOND

Hoje é o dia do bruxo Carlos Drummond de Andrade! O bruxo de baixo é o Machado de Assis! via ACQ
REPORTAGEM ENSAIO

ESCREVE BIUTIFUL

por Miguel Boaventura

foto: Celso Oliveira

Rita Von Hunty fala-nos, esta semana, em seu canal, sobre o fracasso do Projeto Humanidade. Passa por Kant, Hegel e Freud, pelas filosofias de concepção da subjetividade e pelos entendimentos sobre o que somos e como somos.

 

O que ela nos diz, em síntese, é que a Humanidade, no sentido de seres superiores, não se concretizou. Protagonistas da violência contra tudo, inclusive nós mesmos, seguimos na destruição, antes mesmo de existirmos como idealizado.

 

Um Dinossauro virtual performou no plenário da ONU, no melhor estilo hollywoodiano. Moralista e indignado, ensina como foi ruim a sua espécie ter sido varrida do planeta, numa tempestade de meteoros. Fala o quanto é burro e esquisito os seres humanos serem seus próprios algozes, voluntariamente e conscientemente. No nosso caso, a autodestruição é uma escolha animada e contínua.

 

O clima, as pragas, as crises. Sobretudo a violência que já deixou de ser simbólica há muito tempo.

 

Vem-me à mente a angústia de um pai da periferia de Barcelona, interpretado por Javier Bardem num filme de 2010. Sozinho com as crianças, envolve-se em serviços ilícitos para sustentar os filhos e esconde-se da Assistência Social para que não lhe sejam tomados.

 

Com dúvidas na tarefa de inglês, a filha de 10 anos, pergunta ao pai como se escreve Belo? Ela pronuncia e Bardem soletra: B,I,U,T,I,F,U,L. Escreve BIUTIFUL, ele reafirma. Sem coragem de dizer que não sabe, ou talvez convicto de que assim seja, o que importa é a segurança afetiva que entrega, sem reservas, à pequena.

 

Só para ver essa cena vale o filme. Uma das mais BELAS do cinema.

 

 

TRILHAS

 

Biutiful (filme), por Alejandro Gonzales Iñarritu, com Javier Barden

Tempero Drag (canal no Youtube), por Rita Von Hunty

 

CONTO

PADECER NO PRIVILÉGIO

por Tuty Osório

foto: Fernando Carvalho

– Mãe…

-Nossa, filhinha, que voz sumidinha? O que houve?

– Tô um lixo só o pó da rabiola dessa vacina!

– É assim mesmo filhinha. Tem que ficar quietinha para ajudar o corpo a reagir.

– Eu tô me sentindo como se tivesse sido atropelada por um caminhão pipa só que o barril de cimento rolou por cima de mim três vezes e me arrastou pela pista…

– Que imagem é essa que você foi buscar para definir a reação à vacina! Cruzes! Mas é por aí. Corpo pisado né? Nunca reparei como é um caminhão pipa. Acho que nunca vi nenhum ao vivo. Nem quando tinha colapso de água em Fortaleza, por causa da seca…

– E como vocês faziam?

-Bom. Algumas casas e prédios tinham poço. Nem sei se isso era bom para o lençol de água.

-Eita!

-Tempos confusos. A gente saía com toalha no ombro para tomar banho onde tinha poço. Famílias inteiras se cruzavam nos elevadores na mesma missão. E não chovia. Teve criança que só foi conhecer chuva uns dois anos depois de nascer…

-Que nem os bebês da Pandemia, né? Que não conhecem outras crianças. Começaram a conhecer agora…

-É…

-As dificuldades da classe média alta nas crises…

CRÔNICA

BRUXAS BRASILEIRAS

Por Tuty Osório

via Trip Advisor

O 31 de outubro entrou no calendário brasileiro há mais de 3 décadas, em meio à gritaria dos defensores da cultura de cá. Muito importante defender a cultura identitária, só que, no caso das bruxas, rolou um equívoco. Elas não são inventadas pelos Estados Unidos da América. Existiram, e existem, pelos cantos redondos do mundo; e temos nós, também, as nossas raízes com elas.

 

Além do que, dia 31, é também, o dia do Saci Pererê. Nosso bruxinho peralta e portador de boa sorte.

 

Exclusivo nosso, o Saci ganhou seu dia nacional em 2013. Nascido de sincretismos de lendas indígenas e africanas, o Saci é brincalhão, ágil e pode ser muito mais do que a lenda. Simbolizar o respeito à diferença e a inclusão do que jamais deveria ter sido excluído.

 

Gerando movimento em redemoinhos de bem humorada consciência, é mais um elemento de como somos interessantes e diversos.

 

As bruxas foram perseguidas, torturadas e apagadas a partir da idade média, devido ao seu poder de cura e por serem as soberanas cuidadoras da comunidade. Nesse tempo, mulher e bruxa eram sinônimos. E amigo delas também ia pra fogueira. Recentemente há um resgate dessa sabedoria, tão faltante e evidente neste novo milênio.

 

Em Florianópolis, capital de Santa Catarina, o escritor Franklin Cascaes promoveu a divulgação das lendas açorianas levadas para lá pelos imigrantes portugueses. Nascido em 1908 e falecido em 1983, dedicou a vida aos estudos de cultura e escreveu contos e ensaios com a temática das bruxas, habitantes mágicas da ilha, desde muito antes da chegada açoriana.

 

Uma das histórias é a da festa que organizaram para festejar com todos os seres mágicos – duendes, gnomos, centauros, enfim, a turma toda. Não convidaram o Diabo!

 

Zangado, o danado apareceu de surpresa e transformou todos em pedras que hoje formam a praia de Itaguaçu, belíssima, aliás.

 

TRILHA

 

O fantástico da ilha de Santa Catarina, (livro), por Franklin Cascaes

HISTÓRIAS DE HISTÓRIAS

NINGUÉM ESCREVE AO CORONEL

Por Lia Raposo

foto: Colita/Corbis

O CORONEL DESTAMPOU a lata de café e notou que apenas restava uma colherinha de pó. Tirou a panela do fogo, jogou no chão de barro batido a metade da água e raspou de faca todo o interior da vasilha, até botar na panela o que restava, uma mistura de raspas com ferrugem.

Sentado junto ao fogão, em atitude de confiada e inocente expectativa enquanto o café não fervia, o Coronel como que sentiu brotar de suas tripas cogumelos e lírios malignos. Era outubro. Eis uma manhã difícil de vencer, esta, mesmo para um homem de sua fibra, sobrevivente de tantas outras manhãs. Havia cinquenta e seis anos – desde que acabara a última guerra civil – que ele não fazia outra coisa senão esperar. Outubro era uma dessas raras coisas que chegavam.

Nos dois primeiros parágrafos deste pequeno romance, Gabriel García Márquez já nos laça para sempre. Não há como parar. É necessário saber o que há com o Coronel. E o que sua espera significa. Além do sabor garantido da maneira como será contada.

 

Segunda obra de Márquez, Ninguém escreve ao Coronel foi escrito em 1957, em Paris. Aos 29 anos, o escritor trabalhava como correspondente de um Jornal colombiano, com saudades de casa e um aperto financeiro daqueles! Tinha planos de estudar cinema na França. Planos frustrados pela extinção repentina de seu emprego – o Jornal foi fechado pelo governo da época.

 

Após duas versões, sucessivamente recusadas pelos editores, a terceira foi publicada em 1961. Criada no exílio porém, fortemente marcada pelas cores intensas de uma Colômbia lamentada e desejada, é mais um glorioso bordado que nos é entregue pelo futuro Prêmio Nobel, com Cem Anos de Solidão.

*fonte edição de 2014, editora Record

 

TRILHA

Ninguém escreve ao Coronel (livro), por Gabriel García Márquez

O BEM VIVER

FADAS E BRUXAS

por Camilla Osório de Castro

ilustração: Brian Froud

O dia das bruxas é uma celebração pagã de países anglófonos de provável origem na festa da colheita celta Samhain.

Nos Estados Unidos há a crença de que neste dia o mundo dos vivos e o dos mortos se aproxima e colocam-se fantasias para assustar os maus espíritos.

No Brasil esse costume vem sendo incorporado devido à exportação midiática que os estadunidenses têm realizado nas últimas décadas.

Em 2003, o deputado Chico Alencar e a vereadora Angela Guadagnin, por meio do PL 2.762 propuseram o 31 de outubro como dia do saci em São José dos Campos, onde tornou-se feriado municipal. A proposta dos parlamentares era justamente fazer uma oposição ao Halloween homenageando uma figura de nossas culturas populares.

A lenda do  Saci- pererê teria surgido no Sul do Brasil e de lá espalhou-se por todo o território nacional. O Saci é um menino negro de uma perna só que prega peças nas pessoas, bagunçando suas casas, salgando sua comida e divertindo-se com as confusões geradas por suas travessuras. Possui uma carapuça vermelha e fuma um cachimbo, além de realizar pequenos tornados ao se deslocar muito velozmente.

No livro Good Faeries and Bad Faeries, o britânico  Bryan Froud faz uma mistura entre obra de arte e enciclopédia de seres míticos.

Bryan denomina fada todos aqueles seres que vivem no limbo entre o mundo dos espíritos e o mundo “real”, afirma comunicar-se com elas e faz desenhos impressionantes de como gostariam de mostrar-se aos humanos. É curioso como o conceito de fada de Froud aplica-se a seres míticos de todas as culturas citando, inclusive, o Saci como uma fada da América do Sul.

Há alguns anos eu tinha verdadeira irritação pelo Halloween e sua hegemonia em nosso mês de outubro, com destaque para as crianças cada vez mais urbanas que vão deixando de saber quem é o Saci mas sempre sabem quais os personagens do filme de terror estadunidense daquele ano.

Mais recentemente, temos um olhar mais atento sobre a figura da Bruxa, impulsionados por obras como O Calibã e a Bruxa onde Silvia Federici realiza uma perspectiva feminista da história da caça às Bruxas, popularizando questões que estavam restritas aos núcleos de estudos feministas das universidades.

Nesse contexto, passei a gostar de pensar no Halloween como o Dia das Bruxas, dia de homenagear as mulheres que morreram queimadas.

Observando o conceito de Saci Fada, acho interessante hoje pensar nesta data como um dia de encontro com o sagrado pagão, em oposição ao sagrado da dominação cristã.

Um dia de entrar em contato com os mistérios do mundo, tão expressos em mitos, lendas e rituais em todas as culturas.

O véu entre este mundo e aquele outro que não sabemos bem no que consiste está mais fino, quem sabe que descobertas revolucionárias podem ser feitas se tentarmos realmente ver o outro lado?


TRILHAS

A Bruxa, (filme), por  Robert Eggers, 2015

O Calibã e a Bruxa : Mulheres, Corpos e Acumulação Primitiva ( livro), por Silvia Federici, 2004

Good Faeries and Bad Faeries, (livro), por Brian Froud, 1998

Lendas Brasileiras: 21 histórias criadas pela imaginação do nosso povo ( livro), por Câmara Cascudo, 1945

POESIA

Rascunho - Chico Araujo, in Versos, sombras e assombros.

Performance de Kelsen Bravos

BACHIANAS E COMPANHIA

UM BLOODY MARY EM VIENA

Por Sérgio Pires

foto: Adobe Stock

Esta é uma história acontecida. Qualquer semelhança com pessoas reais ou fatos verídicos é intencional. Ela se passa em Viena, Áustria, mas alguns de seus personagens mais importantes são intelectuais, artistas de Hollywood, bartenders, uma garçonete, um príncipe russo e uma rainha. 

Em histórias que remetem aos EUA, Inglaterra, Índia e Paris. Mas os personagens principais são este que vos escreve e as Madames E e N.

 

Estávamos caminhando por uma avenida de Viena e anoitecia. Resolvemos jantar. Iniciamos a procura de um restaurante. Uma porta aberta, entre duas lojas, me chamou a atenção. Um cartaz informava que ali era um restaurante fundado no século XVIII e uma seta apontava para a direção óbvia, para baixo, uma longa escadaria.

 

Tinha um toque de história e mistério, descemos a escada sem nem pensar duas vezes.

 

Sei que a notícia é antiga, mas gostaria de lembrar que Napoleão foi casado com uma austríaca. Mas espera um pouco! Como é que o pequeno general está entrando nesta história? É que na primeira página do cardápio vinha a informação “Napoleão comeu aqui!”

 

Se você está em um restaurante na Áustria a sua chance de encontrar o Wiener Schnitzel em seu cardápio é de cerca de 99%. É o nosso filé à milanesa, no caso à austríaca, bem achatadinho, do tamanho do prato. Pode ser de filé, carne de porco ou vitela. E deve ser crocante por fora e suculento por dentro, normalmente acompanhado de uma salada de batatas.

 

Harmonizamos perfeitamente o prato com um vinho da uva Grüner Veltliner. O branco mais emblemático da Áustria.

 

De volta ao hotel, após o banho, Madame E parou na minha frente e me olhou com seus olhos de um verde profundo, que sempre me causam um estranho encantamento, e disse com uma voz levemente rouca, “Estou com vontade….” Imediatamente respondi, interrompendo-a, que eu também estava com vontade, mas ela concluiu, – “com vontade de tomar um Blood Mary”. Não prometeu nada para após o drink, mas deixou uma sugestão no ar, um perfume sensual. Mais tarde identifiquei o tal perfume, era do sabonete do hotel.

 

Antes de continuar a minha história desejo falar sobre a disputa quanto à origem da receita do coquetel Bloody Mary (Maria, a sanguinária), e, também, sobre as três versões acerca da inspiração do nome.

 

Sobre a receita temos as seguintes teorias:

  1. a) George Hessel, uma estrela de Hollywood nos anos 1920 a 1950, que até aparecia em propagandas da Vodka Smirnoff recomendando vodca com suco de tomate, mas ainda sem os temperos.
  2. b) Bertin Azimont, do Hôtel Ritz Paris, o teria criado para o escritor Ernest Hemingway, uma bebida que não deixasse odor, para que a esposa dele não percebesse. Esta versão é a menos provável.
  3. c) Agora, a versão mais aceita é a que o real inventor do drinque tenha sido o francês Fernand Petiot. Mas até aí temos uma controvérsia. Ele criou o Bloody Mary em 1920, quando era um jovem bartender no Harry’s New York Bar, em Paris; ou na década de 1940, já de volta aos Estados Unidos, quando o lançou no Hotel Saint Regis em Nova Iorque?

O drinque foi se aperfeiçoando. A pedido do príncipe russo Serge Obolensky foi incluído o Tabasco.

O molho de pimenta Tabasco merece ter a sua história depois contada à parte. É produzido com a mesma receita desde 1868 e passa por um envelhecimento de 3 anos em barris de carvalho.

 

Aí o nosso coquetel foi batizado por “Red snapper”, nome que logo foi abandonado. O mais óbvio seria pensar que o nome Bloody Mary refere-se à cor vermelha do suco de tomate, mas para quê simplificar se pode complicar?

 

E novamente temos algumas teorias, agora com 3 Marys.

 

Iniciamos com Mary Pickford, atriz americana do cinema mudo. Outra Mary seria uma garçonete do bar Bucket of Blood de Chicago, apelidada de Bloody Mary pelos clientes. Mas o bar da receita não era em Nova Iorque?

 

Enfim, a terceira Mary é a mais provável para ter cedido seu nome ao drinque. Mary Tudor (Mary I), Rainha da Inglaterra, que por suas  sangrentas perseguições ao protestantismo na Inglaterra e na Escócia acabou por receber o apelido da Maria, a sanguinária.   

 

Voltando com a minha história.

 

Corri ao bar do hotel! Era um hotel bem bacana! Lógico que tinha um bartender. Mas depois das 23h ele já havia encerrado seu expediente. Agora só cervejas ou doses de bebida.

 

Retornei ao quarto. Parecia que tinha uma iluminação especial e uma música de fundo. Madame E procurou em minhas mãos o Bloody    Mary e antes que eu pudesse dar qualquer explicação, ALERTA DE PERIGO! Seus olhos mudaram de cor. Sei lá como ela consegue fazer isso! Tentando não gaguejar inventei que apenas tinha ido avisar que demoraria um pouco mais porque iria comprar em um bar ali perto. Onde? Do outro lado da rua. Pertinho, menos de 100 metros. Lógico que não é perigoso.

 

Saí demonstrando toda a confiança, usando um sorriso de canto de boca que Bogard utilizava em Casablanca. Já me disseram que fico igualzinho. Ao chegar ao corredor desabei- “onde vou encontrar um bar aberto agora?” – Resolvi apelar para Santo Onofre, o padroeiro dos biriteiros. Madame N é devota dele. Prometi ficar uma semana sem beber se desse tudo certo.

 

Me informei, muito sem esperanças, com o porteiro do hotel onde teria um bar aberto aquela hora. Ele apontou para o outro lado da rua, uma porta vermelha com uma iluminação meio bruxuleante. “Pertinho, do outro lado da rua, a menos de 100 metros.”

 

“Aí Santo Onofre! Não valeu! Foi fácil demais, vamos guardar aquela promessa para um feito maior.”

 

Quando comecei a atravessar, tive uma sensação de estar entrando em outra dimensão, outra área da cidade. Olhei para trás e me confortei em ver que o hotel permanecia lá.

 

Entrei. Era um bar estranho, com gente esquisita, cachorros e muita fumaça, em um ambiente escuro e de uma atmosfera que dava para cortar com faca. Ao me verem as conversas cessaram. Passei a ser observado em todos os meus movimentos. Ali dentro eu é que era o estranho,

 

Contrariando todas as expectativas, a garçonete parecia que havia acabado de sair do banho, límpida, com uma carinha de boa garota. Quase que perguntei – “sua mãe sabe que você trabalha aqui?”

 

Tentei pedir o Bloody Mary o mais baixinho possível, naquele ambiente achei que não seria entendido como um pedido muito másculo. Mas ela repetiu minha solicitação em voz alta, em alemão e se dirigindo ao seleto público presente.

 

A situação já estava me deixando um pouco nervoso, não lembro se já disse, mas quando fico nervoso consigo me comunicar em qualquer idioma e no sotaque local.

 

Expliquei, também em voz alta que era para a minha esposa. E tentei fazer algumas expressões com olhos e bocas que aquilo me abriria alguma possibilidade mais interessante. Acredito que não sei fazer expressões faciais em alemão.

 

A luminosa mocinha, que parecia ter acabado de completar a idade para poder beber uma cerveja sozinha, não sabia fazer Bloody Mary. Ops! Mas ela tinha todos os ingredientes. Fui ensinando, sob a atenta observação de uns 12 ou 15 pares de olhos.

 

  • 1 dose (shot) de Vodka
  • 200ml de suco de tomate
  • 1/2 dose (shot) de suco de limão
  • 1 dash de molho de pimenta – tabasco
  • 10 ml de molho inglês. Você sabia que ele foi inventado na Índia?
  • 2 pitadas de sal

Sim, um dash de tabasco. Dash não é alemão? É 1/8 de uma colher de chá. Não sabe? Coloque 4 gotas.

 

O silêncio continuava. Até os cachorros estavam atentos ao que acontecia no balcão. Ok ficou pronto o coquetel. Tem copo descartável? De papel? Tinha uma garrafa vazia de suco de tomate.

 

Sem olhar para trás, paguei, agradeci e fui para a rua, certo que seria seguido por uma gangue com cães ferozes mordendo o meu calcanhar, mas voltei sem percalços ao hotel com a minha preciosa carga. No bar do hotel, aquele que agora só servia cervejas e bebidas em dose, pedi um copo alto com gelo. Também comprei uma cerveja só para poder levar um potinho de amendoins e castanhas.

 

Com tanta carga nas mãos, só me restou o cotovelo para chamar o elevador e apertar o meu andar. Dei uns chutinhos leves na porta do meu quarto esperando que Madame E escutasse. Nada! Tive receio de chutar mais forte. Baixei tudo no chão. Abri a porta. “Querida cheguei!” Silêncio, Tudo apagado. Nenhuma música. Mulher dormindo!!!!

 

Agora veio a fúria! Como é que é!? Vai beber este troço é agora!!!! Dentro da minha cabeça eu gritava, mas da boca só saía um ooooi bem baixinho.

Madame E abriu os olhinhos e sorriu para mim. Já falei que seus olhos são de um verde que me causam um estranho efeito? Ainda sussurrou. “Você conseguiu! Amanhã eu tomo. Obrigada.”

Uau!!! Amanhã! Deitei e dormi feliz.

 

 

TRILHA

Mary Tudor, (livro), por David Loades (edição em inglês)

Saudades do Século XX, (livro), por Ruy Castro

 

SABEDORIAS E SAPIÊNCIAS

MANTOS DE PROTEÇÃO, VÉUS DE PREMONIÇÃO

Por Alim Amina

foto: Amama (2015)

Precisas de ir à bruxa, dizia-se antigamente, quando alguém era acometido de seguidos azares ou persistentes doenças. Simpatias de sal grosso nos portais, defumadores de folhas de capim limão, rezas para espantar as febres, papas de linhaça para soltar o catarro do peito.

 

Eram saberes passados de geração em geração.

 

Conviviam com a fé católica fervorosa das missas dominicais e dos terços diários, ao entardecer. Nem crendices, nem esoterismo, eram receitas de família aplicadas junto com os dizeres solenes e as histórias em volta do aquecedor a carvão.

 

Já casada, jovem mãe, não era elegante comentar abertamente a consulta à cartomante ou o recurso à benzedeira. Nunca fui muito afeita, não por racionalidade ou ceticismo. Mas pelo hábito de preferir o recolhimento das minhas orações silenciosas, meus santos de barro pintado, a minha fé sincera e muito íntima.

 

Contraditoriamente, bruxa era, em simultâneo, um xingamento para indicar feiura ou maldade. Depreciando as mulheres, ser uma bruxa não era nada bom. São dizeres que mudam de sentido com o tempo.

 

Hoje há a missão de salvamento das bruxas. Antes em chamas nas fogueiras dos equívocos criminosos dos falsos religiosos.

 

Continuam a brotar os falsos, mas os verdadeiros têm mais espaço, apesar de tudo. A Semana Santa é celebrada da Umbanda aos Cultos de Magia. A fé não é propriedade de ninguém.

 

Ao contrário de muita gente, não tenho medo deste tempo onde se respira mais. Com respeito e amor sincero, há lugar para todas as crenças no coração de Deus.

 

Assisto todos os dias à missa pela televisão, com o mesmo fervor de quando frequentava os templos de pedra e cal. E aguardo o aquietar da Pandemia para peregrinar à Santa Dulce dos Pobres e agradecer a proteção com que tem abençoado a minha família.

 

Na Bahia, vou gostar de ouvir batuques e de sentir os cheiros de lavanda que areiam as escadas da Igreja do Senhor do Bonfim. Lavadas por baianas pretas vestidas de branco, derramando lindas flores de todas as cores.

 

Real expressão de que somos todos escolhidos e precisamos, mais que nunca, dar as mãos.

 

TRILHA

Amama (filme, País Basco espanhol), por Asier Altuna

TIRINHA

SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA

CREPÚSCULO

A VERDADE EXISTE

Maria Homem, psicanalista estudiosa dos femininos, masculinos e plurais, conta em entrevista sobre um grupo de Transvacinados. De camiseta e tudo, afirmaram estar vacinados por se acreditarem vacinados, mesmo sem terem sido, de fato, vacinados. Maria diz também que a maior revelação da Pandemia é a de que a gente é muito louco! Concordo com ela. A maluquice já vinha se apresentando, fantasiada de normalidade, conservadorismo, até, creiam, de liberdade. Uma conversa de Pós Verdade, de Verdade Relativa, de Verdade em versões completamente excludentes. O fato, é que, como diz, também, Maria, a VERDADE existe. Pode não ser totalitária. Pode ser Em Parte, como a definiu Lacan. Mas há verdades inexoráveis. Negar não as transforma. A Terra é, na real, redonda. E quem não se vacinou, meu bem, não adianta vir com ironia de se acreditar vacinada – não está imunizada e ponto final. Resumindo, pode morrer e matar. Claro que todos vamos morrer um dia. Mas não precisa matar os outros, nem fazer papel de idiota. Tem até graça, Ó…E mais um prejuízo: atrapalharem o trabalho dos humoristas, sem terem talento nem legitimidade.

 

Obrigada por estarem com a gente até aqui.

Tuty e Trupe