Edição N. 33 - 20/02/2022
Orquestra

Realização FORA DE SÉRIE percursos culturais.

Edição Geral: Tuty Osório

Textos: Antônio Carlos Queiroz, Camilla Osório de Castro, Manuela Marques, Miguel Boaventura, Sarah Coelho, Tuty Osório,  Jô de Paula, Sérgio Pires, Francisco Bento, Renato Lui, Marta Viana, Alim Amina, Lia Raposo, Yvonne Miller, Elimar Pinheiro,

Fotografia: Celso Oliveira, Camilla Osório de Castro, Manuela Marques, Fernando Carvalho

Edição de Fotografia: Manuela Marques 

Projeto Gráfico e Diagramação: Manuela Marques com consultoria de Fernando Brito.

Ilustrações e Quadrinhos: Manuela Marques, Mário Sanders, Alice Bittencourt.

Revisão: Camilla Osório de Castro.

Mídias sociais: Beatriz Lustosa.

Desenvolvimento de Site: Raphael Mirai.

Música: Maurício Venâncio Pires, Alex Silva, Caio Magalhães, Manuela Marques

Vídeos: Deborah Coelho

 
ALVORADA

SOMOS UM E SOMOS MUITOS

foto: Celso Oliveira

Está difícil não falar do peso. Em todos os números tocamos em temas polêmicos, enfatizamos denúncias de injustiças, racismo, misoginia, discriminação de todo o tipo, preconceito, desequilíbrio nessa nossa humanidade cada vez mais esfacelada em seus princípios humanos.

Exuberantes representantes da opressão roubaram o sentido às palavras, destorcendo-lhes a essência. Ficou difícil até mesmo conseguir escrever. Optaria pelo silêncio se não tivesse um compromisso importante com quem lê e escreve este Domingo. Começo por afirmar que somos pessoas. Parece óbvio, mas não tem sido. Não existem os mercados, o capitalismo, a elite, a população, os Estados, as Potências. Há uma pessoa, somada a muitas outras, compondo cada um dos conceitos e instituições nomeadas como concretudes autônomas. São abstrações tratadas como entes vivos. São reais e provocam estragos. Porém, protagonizados por pessoas e atingindo pessoas. Ao invés de ficarmos escolhendo lado, vamos tratar de assumir que a civilização fracassou, ruiu, segue desgovernada e sem rumo. Que é necessário que nos unamos em torno de coletividades que reconstruam uma humanidade outra. Resgatar a política a serviço da salvação do que ainda resta de uma sociedade de iguais. Se é que algum dia existiu. Mas é assim que faz sentido existir. Estamos aqui para viver solidariamente, tentando corrigir erros graves como o aquecimento global, a desigualdade social, o sadismo da exploração dos mais fracos – crianças, as outras espécies, enfim, os que não têm escolha, que são realmente inocentes.

 

Começa agora mais um Domingo à NOITE em 2022! 

RODA DE CONVERSA

Este espaço é para publicar os sentimentos e comentários dos leitores, colaboradores, apoiadores, de todos os cantos e a qualquer momento. Transformando essa conversa de domingo numa ampla roda de afetos, palpites e bordões. Mandem pra cá por email, pro whatsapp ou pro Instagram, como preferirem. Valeu!!!

 

“Como sempre prazeroso e com ensinamentos.”

Cristina, Brasília

 

“Obrigado, Tuty! Adorei essa edição!”

Carlos Enrique, Fortaleza

 

“O melhor, até agora. Adorei os seus escritos e me emocionei com o de Sarah pelo contexto muito meu conhecido.  Tempo bom de recordar. Parabéns, Tuty. Você e sua trupe me encantam num crescendo a cada domingo.

Wendy, Fortaleza

 

“Parabéns a todas e todos que fazem parte do ‘Domingo à noite’ que passou a fazer parte indispensável das noites de domingo. Bem hajam !”

-Maria Luísa Brascher

 

 

LAREIRAS MÁGICAS

MÃES DO MUNDO

por Camilla Osório de Castro

E eis que Almodovar, o Pedro, nos premia com mais uma obra prima.

 

Não é tudo dele que me mobiliza.

 

A capacidade de trazer algo novo, mesmo que a gente não identifique com exatidão o que é, a cada vez, é forte, à altura da responsabilidade de um cineasta que já fez tanta coisa.

 

Os seus filmes já nascem clássicos, sua estética é puro kitsch com raiz e contemporaneidade.

 

Papo de cineasta. Pode ser. Me amem, ou me odeiem, em primeiros passos e com muito empenho, sou, não nego e não renego, jamais.

 

Seguindo o rumo! MÃE PARALELAS não é sobre maternidade.

 

Tampouco tem como foco a guerra civil espanhola, a repressão fascista, os horrores de Franco.

 

É sobre pessoas, o bem e o mal que nos constitui, nós, enfim, de antes e de depois de nascermos. É sobre ser gente, na Espanha e no mundo, ontem e hoje. E amanhã.

 

Não tem estereótipo de tipo algum. Nem no que narra, nem na forma como narra. 

 

Texto, planos, performances, é tudo tão gente comum, na espontaneidade das externas, na decoração anos 60, repaginada, na Penepole Cruz profissão fotógrafa, caminhando de pernas afastadas, o galã sem cara de galã, a empresária poderosa sem cara de empresária poderosa. Os planos fechados tal qual retratos de estúdio, há décadas atrás.

 

Sem apoteoses, moralismos, pieguices, vulgaridades, nostalgias.

 

MÃES PARALELAS fala sobre nós.

 

Assistam, julguem-me e condenem-me. Com compaixão.    

 

* Camilla Osório de Castro é cineasta e produtora cultural.  Pesquisa o Bem Viver. Mora no mundo, entre cidades. Acredita que sonho que se sonha junto é realidade.

 

CONTO

SÓ QUE NÃO...

por Tuty Osório

foto: Celso Oliveira

– Mãe, eu vi no twitter que estão colocando os negros no fim da fila para atravessar a fronteira, num desses países aí, vizinho da Ucrânia…

-É filha…Absurdo atrás de absurdo. Agora virou uma disputa se a Rússia tem razão por que o governo ucraniano seria a favor do nazismo. Que é uma lição para os Estados Unidos aprenderem que não são donos do mundo…Que é um ultraje à soberania da Ucrânia, sendo que as pobres pessoas, na prática, estão em corrida desabalada, fugindo da morte…

-O governo distribuiu armas para a população civil. Proibiram os homens de sair do território, daí as famílias estão fugindo, se separando. Estão dizendo que toda a guerra é assim, mãe… Bizarro…

-O mundo é bizarro, filha. Por favor não me cobra nada do que eu costumo dizer por que eu estou desnorteada…

– Não ia, mãe. Só uma dúvida…

-Manda, filha.

-Estão dizendo no twitter que não teve essa comoção com o Afeganistão, a Síria, o Sudão…Que só ligam para os refugiados quando são brancos…O que você acha, mãe?

-Filha, é ruim tudo. Não estou preocupada em medir o tamanho da comoção. Sabemos que os brancos são mais fortes, que há xenofobia e racismo na Europa, nos Estados Unidos, aqui no Brasil. Não tem bom…O sofrimento de inocentes é a questão. Desde a invasão das favelas com mil justificativas de que é para matar traficantes e as mortes de crianças, trabalhadores, são efeitos descritas como colaterais…Até essas famílias, em todos os lugares, fugindo a pé, deixando uma vida para trás, sem saber o que vão ter pela frente…Cada uma dessas pessoas não pode ser esmagada pela geopolítica…

-Nossa mãe, você tá mal, mesmo…Nem vou pedir pra você me explicar melhor sobre essa geopolítica…

-É filha. Deixa para depois…

– Vou pesquisar logo, mãe. Não tá com cara de que essa situação melhora, tão cedo…

HISTÓRIAS DE RÁDIO

Laudelino e Ludmilla

Por Lia Raposo

foto: Celso Oliveira

“O rádio criou modas, inovou estilos, inventou práticas cotidianas, estimulou novos tipos de sociabilidade. Ícone de modernidade até à década de 1950, cumpriu um destacado papel social, tanto na vida privada, quanto na vida pública, promovendo um processo de integração que suplantava os limites físicos e os altos índices de analfabetismo do país.”

 

In A Era do Rádio, por Lia Calabre, na Amazon em Ebook

 

Minha xará, Lia, conta a história do rádio brasileiro dos anos 20 ao surgimento da TV, avançando até a década de 60. Nós aqui, no Domingo à NOITE, somos muito fãs de rádio. Em formato POSCAST ou da programação ao vivo, tradicional, somos ouvintes, mesmo naquele trajeto de carro, rapidinho.

 

Rádio tem a ponte certinha com a imaginação. Pelas vozes, fantasiamos os rostos, as alturas, os tipos. Inventaram a imagem do rádio, transmissão via Face, Youtube, e outros suportes que trazem junto o visual. Confesso que prefiro as vozes, os sons de cobertura, e a concentração absoluta na audição.

 

Nesta obra breve, porém detalhada, de Lia Calabre, transportamo-nos às origens da Rádio, num Brasil que se buscava, mesmo sem sabê-lo, na paisagem  dos anos 20 do século XX. Retrovisor necessário neste XXI que já vai deixando de ser tão novo.

 

*Lia Raposo dedica-se a Estudos da Cultura, é redatora de Projetos Culturais, Produtora de Conteúdo e jornalista. Tem 33 anos de muitas dúvidas, algumas certezas e esboços de ousadia. 

MÚSICA

BEATRIZ – Edu Lobo e Chico Buarque

por Maurício Venâncio Pires

Cantar Beatriz é um agradável desafio, ela é uma das mais belas canções brasileiras de todos os tempos.
Milton Nascimento, Ana Carolina, Zizi Possi e Mônica Salmasso deram luz a esta obra-prima.
Numa entrevista, Chico falou um pouco sobre a composição:
“E só tem graça aceitar uma encomenda quando você pode ser infiel ao que foi encomendado, quando você pode tomar certas liberdades. Quando eu estava fazendo as letras para as músicas de Edu Lobo, no balé O grande circo místico, havia um tema para a equilibrista que eu não conseguia solucionar. No poema de Jorge de Lima, a equilibrista se chamava Agnes, que aliás é um belo nome, mas a letra não saía. Então troquei Agnes por Beatriz, transformei a equilibrista em atriz e coloquei-a no sétimo céu, em homenagem à Beatrice Portinari, de Dante. Beatriz carregando minhas obsessões…”
Agradeço a oportunidade de cantar Beatriz, nome da minha neta número 4, no dia de hoje – 27 de fevereiro, meu aniversário.

Mauricio Pires, funcionário aposentado do Banco do Brasil, com mestrado em Finanças. Durante muito tempo achava que a música era algo para ser ouvido, cantado jamais, não tinha jeito.
Até que veio o seu aniversário de 60 anos, em 27 de fevereiro de 2016 e ele resolveu fazer uma surpresa para a família em um almoço de comemoração.
Fez 12 aulas escondido de todos e no discurso de agradecimento aos 120 presentes cantou a música: “You’ve got a friend”, que foi uma forma de retribuir e surpreender o carinho daqueles que vieram de longe para homenageá-lo.
Hoje, 6 anos depois, continua cantando e, pelo que parece, não vai parar.

CRÔNICA

PEQUENA NAÇÃO

Por Sarah Coelho*

por Celso Oliveira

Casa é museu de afeto. Abrigo de histórias. Cenário de memórias.

 

Tenho ótima memória fotográfica. Engraçado que foto mesmo, só lembro aquela do 1º dia. Logo após a subida frenética de móveis. O sofá, herança do melhor amigo, repartido pela metade.

 

“Esse pedaço não sobre de jeito nenhum. Não cabe no elevador, nem nas escadas”, avisou o cara da mudança.

 

Até um bêbado com um martelo apareceu, garantindo que resolvia a questão.

 

Desistimos. “Sobe só o que der, vai. O resto fica aqui embaixo”.

 

O sofá desconjuntado aparece na foto da sala vazia, nós três pulando.

De alegria. A casa ainda sem nossas cores vibrantes. Sem as plantas, sem a rede de alegria intensa onde embalamos tantos papos e sonhos.

Acho que é sempre assim. Tudo começa cinza, como a parede de cimento queimado. A cor quem dá é a gente vivendo a vida. Colorindo o parapeito de madeira com marcas de copos e vinhos, manchando de batom vermelho a almofada de croché da vovó.

 

Em breve outro vazio me espera. Chegarei com rede nova. Desta vez de um tecido rubro intenso. É anunciação. Adentrarei a casa nova apaixonada.

 

*Jornalista, produtora de eventos, celebrante, sonhadora e realizadora de sonhos, Sarah Coelho tem 32 anos de muita determinação e romantismo.

POR AMOR ÀS CIDADES – Quigali ou Kigali

GUERREIROS SÃO PESSOAS

Por Tuty Osório

Casamento em Ruanda, via http://www.tanianavarroswain.com.br/

Em 1994 passava uma temporada em Paris e assisti à TV repleta de reportagens e documentários sobre Ruanda. Na minha cultura mediana, sabia que existia Ruanda, mas jamais havia visto ser tão abordada.

 

Ruanda como toda a África, naquele tempo, interessava muito aos franceses. Revistas, jornais, discussões em bares, ciclos de palestras.

 

Apercebi-me, então, que com toda a ancestralidade, os países africanos eram desconhecidos da mídia brasileira da época. A rigor, continuam sendo, mesmo hoje, com a maior visibilidade histórica, cultural e social de nossas africanas estruturas.

 

Também em Paris, e nesses anos 90, tomei contato pela primeira vez com as obras de fotógrafos e documentaristas que registravam a saga dos refugiados, estetizando a tragédia como se apenas de temática de arte se tratasse.

 

O que mais me impressionava eram as imagens indiferentes das pessoas em fuga, aparentemente sem destino, esquivando-se da morte por armas e fome.

 

As crianças e seus olhos de medo. Do outro lado do Atlântico, lembrava Fausto Nilo e as fotografias de Hiroshima nos olhos das meninas do sertão.

 

Entretanto, Ruanda superou o conflito específico daquele tempo. Um desentendimento entre políticos, levou ao confronto entre etnias e ao massacre de mais de um milhão de pessoas. E à diáspora de outros tantos que tentaram fugir, uns conseguiram outros não, uns voltaram, outros nunca.

 

Quigali, ou Kigali, a capital, refez-se, cresceu, chegando a ganhar um prêmio internacional por sua segurança, limpeza e conservação do modelo urbano.

 

Cidade bastante horizontalizada, suas moradias espalham-se por vasto território, na maioria encostas. Marcada pela violência do colonialismo e, mais tarde, do imperialismo que o sucedeu no mundo inteiro, Quigali reproduz as desigualdades internas e externas de um mundo em crescente desequilíbrio, a despeito da evolução tecnológica, restrita aos mais ricos.

 

Trago a capital de Ruanda aqui, para lembrar que a guerra é jogo de sádicos que se exibem às custas da destruição de famílias atiradas ao desespero físico e moral.

 

Em Kigali, torturada ao extremo em 1994, visibilizada por isso e abandonada sempre, simbolizo o infortúnio das pessoas que sofrem com a leviandade dos tomadores de decisão, luxuosamente refestelados em suas fortunas e que ainda angariam adeptos e liderados. Neste preciso momento com o foco de sangue sobre a Ucrânia.

 

Amanhã haverá outro palco de ostentação do suplício da vez.

 

Sendo que, diariamente, há os pequenos palcos. Nas nossas comunidades, ao nosso lado, na nossa porta, na nossa cara.

 

Comandados pelos falsos profetas, das poltronas roubadas, no apertar de botões assassinos. 

 

TRILHA

 «Human Development Report 2019» (PDF) (em inglês). Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas.

Ruanda na Wikipédia e outras fontes.

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DENTRO E FORA

Este espaço é para tratar de psicologia, psicanálise, psiquiatria, enfim, das reflexões e formas que dizem respeito à Saúde Mental. De quem pratica, ensina, vivencia.

APOIO ECOLOGIA
REPORTÁGEM ENSAIO

NÃO É QUALQUER CARNAVAL

Miguel Boaventura

Carnaval da Bahia na década de 70, via https://www.visiteobrasil.com.br/

Coisa que me irrita é quem se leva a sério. Por favor. Pelo menos isso havemos de ter aprendido alguma coisa com a maturidade. Daí que recuso-me a falar da Rússia, da Ucrânia, da hipocrisia que transborda de todos os lados.

 

O que me incomoda é o erro da guerra, que obviamente não seria evitada se o papai ocidente tivesse sido mais sábio em lidar com o filhote russo rebelde, batendo o pé que não se ameaça as suas fronteiras, fingindo para seus liderados que tem intenção e capacidade de ressuscitar o império soviético.

 

A mim é que não me convencem. São todos criminosos quando ignoram as pobres pessoas em fuga, mais pessoas, mais uma vez, desta vez na Europa, abandonando casas, história, vida vivida e por viver.

 

Essas discussões sobre a adequação e a imprudência de um e de outro inspiram-me desprezo.

 

O tal do filhote é um lúcido perverso e os fantoches de plantão, nos demais países, que se acreditam poderosos estão fazendo um papelão de bufos nas mãos dele. Diverte-se à grande e no final conseguirá o que quis. Não devia era estar na creche, pelo que me parece. E sim quietinho, sem riscos de ameaça cumprida. Deu no que deu…

 

Já me indispus com uma data de gente. Então já falei até demais, para quem não ia falar nada.

 

Falemos de carnaval. Enganam-se que me restrinjo ao Brasil.

 

Vi umas imagens inacreditáveis de carnaval de rua em Lisboa, aglomeração irresponsável em plena Pandemia. Qual foi a parte de que a Pandemia não acabou que faltou compreender?

 

Nas capitais brasileiras, proibiram a festa da rua e liberaram, pasmem, as particulares.

 

Pela primeira vez na história, já tão marcada por exclusões, privatizou-se a festa do povo.

 

 Parece piada, mas não é. É real e ainda ostentam a quantidade de polícia destacada para reprimir as aglomerações dos pobres.

 

*Com dupla residência entre Lisboa e Brasília, Miguel Boaventura é arquiteto urbanista e escreve por vocação e obrigação. Pessimista por consciência, luta para resgatar a esperança, a cada indignação.

SABEDORIAS E SAPIÊNCIAS

MEDO E INSENSATEZ

por Alim Amina

Alfredo Boulton via https://www.moma.org/

Nasci no ano que a segunda guerra estourou na Europa. Em 1940. Quando acabou tinha 5 anos, e ouvi histórias mais tarde.

 

As duas guerras marcaram muito o Brasil. Fomos atingidos de muitas maneiras, perdemos soldados, houve muitos equívocos aqui – como a perseguição aos japoneses, alemães, italianos e seus descendentes.

 

A guerra trouxe refugiados, mudou a face do Brasil que já caminhava multifacetado. Até hoje tem gente que varre para debaixo do tapete o que aconteceu. Mas lembro das histórias que ouvi dos mais velhos.

 

Em Portugal, que não entrou diretamente na guerra, mantendo-se neutro, seja lá o que isso for, um amigo nascido em 1935 recorda-se de ir às filas de racionamento de comida, de mãos dadas com a mãe portando os bônus de troca.

 

Já lá se vão 80 anos, muita conversa fiada de caras de pau metidos a estadistas, a esperança de que o mundo das Nações Unidas estaria consolidado e o choque com mais um massacre dos fortes sobre os fracos.

 

Acendi uma vela a Nossa Senhora do Desterro. E pedi que desterrasse dos corações a consciência da fraternidade.

 

Até Deus duvida de tanta leviandade. Tanta desfaçatez. E ao final somos nós os ingênuos que nada sabemos…  

 

 

*Alim Amina, tem 81 anos, é professora formada mas nunca exerceu. Cearense, estudou em Portugal na adolescência e foi colega de colégio de Mila Marques. Reencontraram-se em Fortaleza, na década de 70, e retomaram a amizade até hoje. Dividem o espaço da Sabedoria dos domingos.

CURADORIA

Únicos, (livro) por Alberto Perdigão, Editora Radiadora, é um desabafo existencial em forma de poesia. Solidão, saudade, silêncio e sombras, são os Ss que traduzem o olhar de Alberto sobre o fim e o início dos tempos.

CONTATOS

aperdigão13@gmail.com

@falaperdigao

BACHIANAS E COMPANHIA

FLOR DO CARNAVAL

por Sérgio Pires

Sobrevivendo numa réstia de memória, me vêm evocações dos carnavais do passado, que só existem na saudade ou em algum pedacinho de papel colorido esquecido no fundo de uma gaveta. O refrão de uma marchinha carnavalesca, que um dia fez sucesso, soa vagamente familiar no fundo de minha cabeça, como trilha musical para o filme das minhas lembranças, da que me é mais importante, a do meu último carnaval de criança, o primeiro como uma mocinha.

 

Todo ano minha fantasia mobilizava a família durante semanas. Tantas tias, avós e mãe para se realizarem com uma única menina. Discutiam horas, cada uma defendendo sua idéia de como eu ficaria linda com esta ou aquela roupa. Gatinha ou Odalisca? Melhor seria uma Colombina. Os Pierrôs e Arlequins ficariam loucos. No final mais uma vez venceu o voto de meu pai. Baiana, igual àquela foto da Carmem Miranda na revista Manchete.

 

Iniciava uma alegre balbúrdia entre elas, que me amavam até me doer, pelas definições dos detalhes. Compra do tecido, dos babados e balangandãs, elaboração da fantasia, provas para ver se estava bem ajustada, sugestões, comentários, exclamações e amuos. Isto durava todas as semanas que antecediam a primeira matinê de carnaval no Clube local.

 

Todas separadamente, em duplas, trios ou em coro total, afirmavam e garantiam que aquela garotinha ficaria linda, até seu pai, quanto muito instado, concordava, mesmo que mal tirasse os olhos do noticiário do jornal. Apenas uma pessoa ali presente pensava diferente, julgava impossível que ela ficasse bonita, por mais linda que fosse a fantasia e silenciosa sofria. Ela, ou seja, eu, a garotinha.

 

O quarto de costura fervilhava de excitação, panos recortados pelas minhas magras medidas, linhas, agulhas e alfinetes espalhados. Cuidado quando sentar menina! Lembra da sua prima que a agulha entrou no corpo? Você vai ficar linda! Uma flor!

 

Uma flor! Eu? Qual seria a flor? Pensava nisso durante dias seguidos. Quanto mais perto do carnaval, maior a excitação das mulheres, até meu pai deixava por alguns momentos o seu jornal e vinha dar uma expiada no progresso do trabalho numa das intermináveis provas da fantasia a que eu era submetida. Todas, e ele também, sempre me reservavam elogios prontos para esta ocasião. “Uma mocinha!”. “Linda! Parece uma flor.”

 

Olhando para mim, do fundo do espelho, via apenas uma garotinha pequena, de corpo magro. O cabelo moreno, de tão liso era escorrido. Em suas feições, até que delicadas, destacava-se um nariz adunco. Não sorria, talvez por timidez ou talvez por não gostar dos seus dentes pequenos. Ou ainda, simplesmente, por não ter vontade de sorrir. Nada que me parecesse com uma mocinha ou que me lembrasse uma flor. Tão branca e magra, quem sabe, talvez um talo de Copo de Leite.

 

O carnaval se aproximava e a fantasia estava quase pronta. Meu pavor ia aumentando. Ninguém iria querer dançar comigo no baile. Meus colegas de escola me isolavam, não tinha primos, os filhos das amigas de minha mãe e tias eram os meu colegas de escola. Iria passar a maior vergonha.

 

Chorei na noite da véspera do carnaval, antevendo os quatro dias de folia e brincadeira dos outros que teria de suportar. Convivia fácil com minha tristeza quando longe da felicidade alheia. Com ela ali tão a minha volta, gritando e pulando ante meus olhos, o contraste me seria fatal. Chorei, mas sem barulho, silenciosamente, até evitando molhar o travesseiro com minhas lágrimas, chorava com pudor. Silenciosamente rezava para ficar com febre ou sei lá, talvez quebrar uma perna. Seria o máximo, além de não ir aos bailes ainda seria um sucesso na escola andando com o gesso.

 

Fiz tanta força em pensamentos para adoecer que adormeci. Despertei alegre, esquecida de tudo. Pela primeira vez em dias abri os olhos e esbocei um sorriso, que se quebrou antes de se completar, diante de mim pairava a minha roupa de Carmem Miranda. Caprichosamente passada e engomada, pendurada em um cabide colocado na porta do meu querido armário rosa, que uma vez virou em cima de mim quando tentava escalá-lo.

 

Quedei imobilizada, sentada na cama, com os pés esticados sobre o lençol, capturava cada detalhe da fantasia, o tecido branco do qual não sabia o nome era lindo, filas de rendas do crochê de minha avó se sobrepunham em sua volta, fitas coloridas serpenteavam entre as rendas, bordados de minhas tias e os arremates e costuras de minha mãe. Um turbante com frutas tropicais de plástico, ornado com um grande laço dourado repousava numa cadeira ao lado. Era lindo e aterrador ao mesmo tempo.

 

Depois não conseguia imaginar quanto tempo fiquei ali em contemplação estática. O tempo pareceu ter parado, cheguei a pensar que minhas preces haviam sido atendidas e que nunca chegaria a hora da matinê. Quando esta ideia começava a me fazer perceber que poderia até sorrir, a porta do quarto foi aberta, sem a suavidade de todos os dias, demonstrando a ansiedade de minha mãe. Além dela entraram no quarto também os sons de todas as vozes excitadas das alegres mulheres da minha família, que com tanto carinho me impingiam seu amor.

 

Se num momento o tempo havia parado, agora passava em turbilhão. Pareceu que fiz todas as refeições em um só momento, sentei para o café-da-manhã e quando levantei tinha sido o lanche da tarde. Todas me aprontado, meu pai só me veria depois de pronta, sua missão era me passar o batom, o toque final. Banho caprichado, cabelo lavado e enrolado, era a única crítica que faziam. “Nunca vi cabelo tão liso, nada fica nele, nem permanente pega!”.

 

Vestida a roupa, uma última alinhavada numa renda que teima em não ficar no lugar, coque nos cabelos para colocar o turbante, maquiagem, pulseiras, brincos e balangandãs. Está pronta a baiana!

 

Meu pai se aproxima, senta e cuidadosamente me passa o batom. Minhas tias extasiadas com a cena suspiram alto, para que ninguém duvide de quanto estão emocionadas. Minha mãe mareja os olhos. Papai se levanta e, cuidadosamente, para não amassar a saia engomada, me toma nos braços e me coloca em cima da cadeira. Quase que percebo um laivo de emoção em sua voz. Beija minha testa e repete várias vezes, enquanto as mulheres assentem com quase gestos ou quase palavras: “Minha pequena notável. Está uma mocinha! Uma flor!”. 

 

Não era de mim que falavam, não me reconhecia assim na imagem do espelho. Via uma ratinha branca de turbante. Qual flor? Uma couve-flor? Sem coragem para me rebelar, sem coragem para ir ao baile. Sem coragem para chorar. Sem coragem para decepcionar a todas e principalmente o meu pai.

 

Fomos a pé. O clube era pertinho. Ia rodeada pelas tias, minha mãe segurando uma de minhas mãos e as duas avós disputando a outra. O som dos metais da orquestra do baile ia ficando cada vez mais alto, um coral de mil vozes cantava aquela marchinha que tanto sucesso fazia naquele ano.  

 

Dentro do baile após me exibirem para todas as amigas e outras mulheres nem tão amigas assim, me mandaram entrar no salão para brincar. Pela primeira vez comecei a esboçar alguma reação, uma negação. Balbuciei algumas palavras que se perderam no alarido e mãos ávidas e ansiosas por me verem divertindo me conduziram para o salão, onde todos dançavam dando voltas no salão, em círculos infindos.

 

Atirada ao movimento saí tropeceando, rezando para não cair, aumentando assim ainda mais a minha humilhação. A multidão pulando e cantando tendo por cima, nem lá assim tão no alto, telhas de amianto, fazia com que a temperatura subisse. “Ai que calor. ôôô ôôô .. “ Não, não era essa a marchinha daquele ano. Sentia que o turbante se transformava num forno, como revelava o suor que escorria por minha testa e nuca. O empurra-empurra amassava minhas saias, tão bem engomadas, a maquiagem borrocava, uma mão me arrancou o turbante, olhei em volta e vi vários rostos que expressavam maldade.

 

Fugi do salão, fugi da mesa da família e das mesas dos colegas de escola. Fugi! O coque desmanchado, o cabelo amassado e molhado de suor colado na cabeça, procurei me anular, sumir. Fui para trás de uma coluna e jurei ficar lá até o final do baile. No vidro de uma janela próxima eu me via pateticamente refletida, não era uma mocinha, não era uma flor. Eu estava perdida.     

 

O tempo passava e cada vez faltava mais para o baile terminar. As marchinhas se sucediam, mas para mim tudo que a banda tocava e os foliões cantavam era um som único e contínuo. Quantas músicas depois eu não sei, mas ao olhar novamente para a janela vi um índio junto ao meu reflexo.  Um índio gorduchinho, de 10 ou 12 anos, encostado na parede, remexendo um monte de serpentinas coloridas entre as mãos. Ele me observava.

 

Percebi em seu olhar que sofria o mesmo que eu. Os rejeitados se reconhecem no olhar. Ficamos nos entreolhando por algum tempo, depois começamos a nos olhar diretamente. Sem sorrir, sem avançarmos um gesto em direção ao outro. Ficamos ali, entre a alegria dos outros, a nos fitar e a nos compreender.

 

“Lalarara lalarararááá , Cidade Maravilhosa ….”

 

Pela primeira vez sorrimos um para o outro. Alívio estampado nas faces. A música era a senha para o final do baile. Olhei para trás na tentativa inútil de avistar minha mãe e tias. Ao retornar, em direção à janela, meu pequeno índio de filme de faroeste já não estava mais lá. Antes que a solidão me tomasse novamente senti um toque suave em meu ombro, era ele. Em silêncio estendeu a mão e me ofereceu uma flor tecida em serpentinas pisadas por pés animados. Tomei a rosa de papel de diversas cores em minhas mãos e a admirei, a achando a flor mais linda do mundo, mesmo sabendo que as serpentinas haviam sido recolhidas num canto do salão para onde foram empurradas pela alegria.

 

Enquanto meu admirador sumia misturado à multidão. Fui sendo tomada por uma sensação nova, que não sabia definir. Hoje sei, foi a de pela primeira vez na vida saber ter a força de ser uma mulher, sentindo em mim e retribuindo o olhar de carinho de um homem, mesmo que os olhos fossem de um garotinho também deslocado. Esta sensação me levou a começar a acreditar que talvez meu pai tivesse razão, que eu já era sim uma mocinha. E também uma flor. Sorri. Sim, uma flor! Afinal, ao menos, poderia ser aquela flor. Uma rosa de serpentinas. Igual à que segurava junto a meu peito.   

         

 

               

(…)

      Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim havia me reconhecido: eu era, sim, uma rosa.

 

(LISPECTOR, Clarice. Restos de carnaval. In: Felicidade Clandestina.)   

 

* Aposentado como bancário e praticante de karatê e Sommelier na ativa, integrante da ABS-DF, Sérgio Pires é escritor e desenhista, poeta da prosa e exímio contador de histórias. Mora em Brasília com Lili, sua companheira linda e maravilhosa, aposentada da Embrapa, cozinheira, apaixonada pela alegria.

TIRINHA

SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA

APOIO SUSTENTABILIDADE
HISTÓRIAS DE STERI 10

ARTE FINAL

Por Brigitte Bordalo*

Minha amiga Raquel tem um restaurante. Ciosa da higiene, é um esforço constante e atento para ter tudo impecavelmente higienizado. Tudo certo quando não aparece alguém cliente em situação de emergência, deixando o espaço do banheiro maculado em termos de odores.

 

Raquel tentou várias opções. Nenhuma atendia a esse momento de saída de alguém em emergência e a entrada de um outro alguém.

 

Foi quando descobriu o STERI 10, na versão acima de 200 ml. Preso à pia por uma correntinha elegante, inspirada nas bandejinhas de cerâmica Athos Bulcão do Hotel Brasília Palace, coladas ao mármore para prevenir tentações empolgadas, o STERI está no plantão para quem esqueceu o portátil, ou não o conhecia.


Com instruções claras num display elegantemente posicionado, pode ser usado pelo sainte ou pelo entrante.

O importante é que salva o banheiro do restaurante de Raquel, protegendo seus clientes de odores conflitantes.

*Brigitte é microempresária da gastronomia e da cultura.

CREPÚSCULO

EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

Ukranian Folk Songs por Olga Pavlova, no Spotify

Em 1988, um ano antes da queda do Muro de Berlim, elaborei e organizei um evento de férias num Shopping de Fortaleza, chamado de Exposições Internacionais. Na Praça Central do Mall, com o auxílio das Casas de Cultura Estrangeira da Universidade Federal do Ceará, a convite do publicitário Rubens Frota, montamos a cada semana, num total de 5, alguns painéis, apresentações musicais, performances, mostras de objetos tradicionais. França, Itália, Japão, Alemanha e União Soviética, toparam a parada e lá fomos nós. O grupo folclórico representante da URSS viria do Paraná e imagináramos uma exibição de cossacos, ao som de balalaicas e muitas acrobacias. O grupo que veio era lírico, tocava uma espécie de enormes violoncelos de lentas notas e usava roupas que me lembraram a infância. Por imensa coincidência, havia vestido uma fantasia de carnaval com aquelas cores, o mesmo design. Na primeira noite, o som dos visitantes era inaudível e no dia seguinte a competente produtora Ana Junqueira cuidou de providenciar a instalação de um micro microfone em cada instrumento e em cada lapela. Alça de veludo, para ser mais precisa. Foi um encantamento, levando o público às lágrimas. Chamados de russos, os paranaenses por adoção esclareceram: somos ucranianos. E contaram a sua versão da anexação e da opressão. Mais tarde a Ucrânia voltaria ao meu cenário por Clarice Lispector e por alguns outros eventos ao acaso. Uma babá médica de uns priminhos portugueses, a tripulação surpresa num voo da TAP. Agora estão aí os ucranianos. Com cara, lágrimas e mais uma vez, apanhando sem terem batido.

 

Obrigada por estarem com a gente até aqui.

Tuty e Trupe

 

APOIO LUXUOSO

Em breve, bistrô saltimbanco